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  • Entrevista Rami Saari - Livro: Por baixo dos pés da chuva.

    ​​ Rami Saari é um poeta e tradutor israelense. Sua carreira é marcada por traduções de dezenas de obras em várias línguas e pela publicação de sua própria poesia. Doutor em Linguística Semítica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Recebeu em Israel o Prêmio Tchernikhovsky e o Prêmio do Primeiro Ministro para Obras Literárias. Esse ano, Rami lançou o livro Por baixo dos pés da Chuva, com apresentação do professor Moacir Amâncio, e editado pela editora brasileira Laranja Original. Rami, você traduziu dezenas de obras de várias línguas para o hebraico e agora vemos sua própria poesia sendo traduzida para o português. Como é a experiência de ver suas palavras viajando por idiomas e culturas distintas? É uma experiência que me enche de alegria e entusiasmo, já que em muitos lugares se fala da morte da literatura em geral e da poesia em particular. Meus poemas foram traduzidos antes para outros idiomas, e isso aconteceu em uma época em que ainda existiam festivais internacionais de poesia, subsidiados pelos países que os organizavam para enriquecer a cultura local e global. Mas na era do Zoom, tudo isso já mudou bastante... No entanto, oito antologias de minha poesia foram publicadas nos últimos anos: quatro na Grécia, uma na Albânia, uma na Espanha, uma na Finlândia e agora este livro no Brasil. Fico muito feliz em saber que, dessa forma, minha poesia é acessível a leitores em países cuja cultura em geral e literatura em particular me interessam muito, a ponto de dedicar muitos anos à sua tradução para uma das línguas oficiais do meu país, o hebraico. Sua poesia, escrita em hebraico, aborda uma ampla gama de temas e cenários. Como sua experiência multilíngue e multicultural influencia sua escrita? De muitas maneiras e de muitos modos. Tendo estudado vários idiomas desde jovem, vivido em muitos países, aprendido sobre diversas culturas e conhecido pessoas de diferentes contextos linguísticos, culturais e religiosos, e com grande variação relacionada às suas experiências vitais, históricas e opiniões sobre temas sociais e políticos, cheguei em uma idade relativamente jovem a entender a diferença entre a verdade e a propaganda, a importância da tolerância e o significado de abrir as janelas fechadas da mente para que as pessoas cegas deixem para trás, pelo menos parcialmente, suas ideias equivocadas sobre a superioridade e o valor máximo de sua própria identidade. Sou a favor de um mundo onde as diferenças são respeitadas e onde se compreende o valor de cada cultura, mas um universo que é apenas um povo global, onde as diferenças são apagadas em favor de uma superficialidade vazia de conteúdo e uma falta nefasta de propostas futuras, me parece uma das piores pesadelos de nossa atualidade. Como a literatura e a poesia apareceram na sua vida? Quais são suas principais influências? A literatura em geral e a poesia em particular apareceram em minha vida desde a infância, porque em casa havia muitos livros em vários idiomas. Sendo bilíngue desde a infância, isso também teve impacto na minha forma de crescer e ver as coisas, de entender que sempre existem várias maneiras de olhar para a mesma coisa, e que as diferenças na expressão não significam quase sempre riqueza mental. Venho de uma família tradicional, mas não religiosa, conservadora, mas não intolerante, multicultural, mas não globalizada. Quanto às principais influências, posso apontar a Bíblia, a poesia hebraica de todas as épocas e, ao longo dos anos, com cada novo idioma que decidi aprender, mais poemas, mais poetas, mais visões interessantes e fascinantes entraram no meu mundo, conseguindo mudar até certo ponto minhas próprias visões e preferências sobre o que é bom, bonito e verdadeiro na expressão poética. Qual é a importância da tradução literária na sua visão e da comunicação entre culturas? Considero a tradução literária um dos mecanismos mais importantes para abrir a mente humana, provocar um verdadeiro interesse pelo estranho, construir uma sociedade mais aberta, humana e justa. Sem conhecer a maneira de viver de outras pessoas em outros países, ficamos presos apenas ao nosso próprio cordão umbilical. Apesar da importância de nossas raízes e do respeito que sinto pelas árvores, o ser humano não é uma árvore, e se as raízes se tornam esposas e correntes, é melhor deixá-las para trás, embora não seja necessário esquecê-las completamente. Construir pontes culturais entre povos e países é uma tarefa importante. Tomara que a detestável comercialização dos valores humanos não transforme completamente essa tarefa em um canto do passado que hoje em dia já não signifique nada para as próximas gerações. Conte-nos um pouco sobre "Por baixo dos pés da Chuva". Este livro é uma antologia bastante ampla da minha poesia, embora não inclua poemas escritos e publicados nos últimos dez anos. Mas considerando que meu primeiro livro foi publicado em 1988, "Por baixo dos pés da Chuva" representa fielmente uma grande parte da minha poesia escrita e publicada dos 25 anos até os 50 anos. Os poemas foram traduzidos e redigidos com talento, sensibilidade e precisão, e ao ler o resultado, acredito que o conjunto serve efetivamente como um bom espelho para os poemários originais escritos e publicados em hebraico em Israel. Eles expressam de maneira franca e digna as experiências vitais de uma pessoa que sempre teve que lutar pelo que queria e acreditava, mas, apesar do preço alto que teve que pagar, não levantava as mãos, continuava fiel à sua fé, aos seus valores e à sua insistência em fazer o que considerava bom, correto e justo. No entanto, a totalidade não é um diário poético narcisista que se concentra apenas em experiências pessoais, mas também um olhar curioso do espectador disposto a se encontrar face a face com a magnífica, embora às vezes também alarmante e até horrível face da realidade. A sua poesia se estende por uma variedade de cenários culturais, incluindo o Brasil. O que mais o atrai na cultura e na literatura brasileira? Há muitas coisas no Brasil, em sua gente, em sua cultura e em sua literatura que me atraem. Me fascina a rica combinação que existe entre o antigo e o atual, entre o velho e o contemporâneo, entre o unilateral e o multifacetado. Adoro muitos dos escritores brasileiros que tive a sorte de traduzir, como Ronaldo Correia de Brito, Andrea del Fuego, Luiz Ruffato e Jorge Amado, mas há muitos mais que ainda não pude traduzir e espero fazê-lo algum dia, como Caio Fernando Abreu, Adélia Prado, Milton Hatoum, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. Você já traduziu Fernando Pessoa, como foi essa experiência? Foi uma experiência muito interessante: ganhei uma bolsa da Fundação Gulbenkian que me permitiu passar vários meses em Lisboa, e durante minha estadia lá, vivi em um bordel onde havia alugado um quarto sem saber que era um bordel, apenas por sua relativa proximidade à Biblioteca Nacional de Portugal. A escritora e jornalista portuguesa Alexandra Coelho fez uma entrevista comigo durante minha estadia na capital lusitana (https://drive.google.com/file/d/1pHZyxBEahxrQVGFQqnaEOTPrSgkgLC6f/view?pli=1), e agora, depois de muitos anos, cumpri com a missão original ao publicar em Israel uma tradução minha de 33 obras de Pessoa em prosa, após vários livros de Pessoa que traduzi em colaboração com Francisco de Costa Reis, o português residente em Leiria que também se encarregou de traduzir muitos de meus poemas para sua língua. Você poderia compartilhar conosco um trecho de um de seus poemas que melhor represente sua visão poética e suas experiências multiculturais? Neste aspecto, prefiro algo menos pessoal e mais universal. Talvez este poema pessimista e otimista ao mesmo tempo seja o melhor exemplo que posso dar, representando ao mesmo tempo minha experiência de vida e nosso tempo atual. "Um discurso da minha vizinha Embora prefira chamar 'efeito estufa', estas vagas de calor são a menopausa da Terra. Vês em mim o que vem depois: a velhice e a morte. Mas entretanto há muitos entretantos e um manjerico verde que se aguenta no vaso do terraço do verão." Rami, muito obrigada pelo seu tempo e pela sua poesia! Deixe um trechinho de "Por baixo dos pés da Chuva" que você mais gosta? “Na grande corrida a alma sobe, desce e volta a subir.”

  • Entrevista Daniel Knight - Livro: Amarás meu nariz brilhante.

    Daniel Knight, radicado em São Paulo desde a adolescência, nasceu em Guaxupé, sul de Minas Gerais, em 1988. Bacharel em Letras pela USP, fez parte da equipe inaugural da editora Tordesilhas (2011-2012) e traduziu, dentre outros títulos, Um amor de Swann, de Marcel Proust. Em 2021, DK lançou, pela Laranja Original, o romance Ninguém nesta família morre de amor, parte da trilogia A ateia. No dia 9 de dezembro, será a vez do segundo volume, Amarás meu nariz brilhante. O pré-lançamento será on-line, pelo canal do YouTube da Laranja Original. Daniel, agora estamos com o segundo volume de A ateia em mãos. Lembrando ao leitor que se trata de uma coletânea desmontável, ou seja, que pode ser lida por qualquer volume. Ousaria sugerir que se comece por Amarás meu nariz brilhante? Por princípio, não aceito recomendações. Ou melhor, aceito por educação, mas não as ponho em prática. Decido o que vou escutar/ler/assistir com base em critérios pessoais, nos quais não aceito intervenções. Estou falando sério: escolher do cardápio do Netflix vira crise existencial se eu estiver acompanhado. Por isso, tenho a coerência de não dar recomendações nem sugestões nem conselhos a quem não gostaria que os retribuísse. O leitor que comece e siga por onde bem entender (pela última página do segundo volume, prosseguindo de trás para diante; abrindo o primeiro volume ao acaso, lendo só os capítulos pares) por sua conta e risco. Escrevi imaginando que cada volume seria lido da esquerda para a direita, do primeiro capítulo ao último, e dando a cada romance independência de enredo para que todos façam sentido se lidos separadamente ou em ordem aleatória. Logo na abertura do seu livro nota-se que a figura materna foge totalmente dos padrões esperados. Porém, é uma realidade que pode existir em muitas famílias. Fugir dos estereótipos é uma marca em sua escrita que faz o leitor pensar em questões tão arraigadas na história da humanidade, surpreende. É pecado uma mãe faltar ao casamento da filha? Fale um pouco sobre. Para mim, não. Só não sei até que ponto minha opinião serve de parâmetro, pois não acredito em pecado e não gosto de festa. Mas, no país em que vivemos, tenho consciência da importância de valores e rituais religiosos fora (e até mesmo dentro) da bolha intelectualoide/literariosa/artistiquenta que nos circunda – experimente recusar convites para ser madrinha de bebês e/ou de casamento (não por qualquer desculpa íntegra ou esfarrapada, mas porque você não acredita em Deus, nem nesses rituais) e analise a reação das pessoas. Me assumi ateu aos nove anos de idade; tenho experiência do desconforto que contestar esses valores e quebrar esses rituais pode gerar, até nas menores proporções. Já causei (mais de uma vez) um pequeno alvoroço por respeitosamente me recusar a rezar antes da ceia de Natal. Agora, calcule você o que causaria uma mãe que se recusa, puramente para defender seus princípios antirreligiosos, a ir ao casamento da filha... Isto posto, o que eu acho a respeito não faz muita diferença dentro da história (e não sou autor que se omita no miolo dos livros), só mencionei meus pensamentos e me estendi um pouco neles porque é um tema que me toca e sobre o qual prometi a mim mesmo que, sempre que possível, usaria meu precário espaço de escritor para abordar. Dentro da história do romance, é o que a Isis acha que conta (afinal, a mãe ausente é a dela). E para uma pessoa no universo dela, com o background dela, com o histórico de discórdia que ela já tinha com a mãe àquela altura, acho que não há dúvidas de que será um golpe duro. Julia, personagem importante desde o primeiro volume, ainda apegada à relação mãe e filha, imposta por uma sociedade cheia de tabus, não consegue se desfazer desse laço mesmo não amando a própria mãe. Por que acha que isso acontece? Por que o ser humano não se desapega de convenções? Acho que o desapego total a convenções ou tabus ou padrões nos conduziria à barbárie. Tenho pouco apreço por questões amplas. Gosto mais de observar por que a pessoa X é tão apegada a convenção Y ao mesmo tempo em que não dá a menor importância para a convenção Z. Jesus Cristo, por exemplo, foi bem enfático no posicionamento contra a acumulação de riqueza (“mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”), mas quantas pessoas que fazem declarações homofóbicas tomando a Bíblia como lastro continuam jogando na Mega-Sena toda semana? Conte-nos um pouco sobre a relação das irmãs Julia e Isis. Não exploro tanto a pergunta para lhe dar a liberdade de explorar a resposta. No plano mais superficial do texto, aquele imediatamente visível na página, elas interagem na condição de irmãs que moram longe, unidas por carinho recíproco e pelas questões que envolvem se relacionar (escolha da Julia) ou não (escolha da Isis) com uma mãe que ambas veem como um problema. Num segundo plano, o da cabeça depravada de um cidadão que se sente deslocado no mundo e, para não se matar, precisa inventar histórias e pessoas todo dia, elas interagem na condição de narradoras cada uma de um romance independente que, ao ser lido como duo de romances ou como parte de uma trilogia, devem se entrelaçar. A voz narrativa da Isis é significativamente mais complexa e polifônica que a da Julia, e isso não é por acaso. Tampouco é por acaso que uma tenha nome de música do Bob Dylan, e a outra, de música do John Lennon. No plano do leitor que, por cento e tantas páginas, me fará a gentileza de jogar o xadrez literário no meu tabuleiro, sempre faltará o que a relação delas significa ao longo do processo de criação. Por exemplo, escrevi a primeira versão de cada um dos três romances em forma de contos, em inglês, em 2018. As narradoras dessas histórias já se chamavam Julia e Isis e já tinham as personalidades que apresentam no livro e a mesma relação entre si. No entanto, de lá até a publicação do primeiro livro, adotei duas gatas (Mingus Rosquinha Goldenberry e Toni Mingau da Silva). Daí em diante, a relação entre as irmãs personagens passou a ser, para mim, espelhada na relação entre as duas gatas, o que não pode ser parte do repertório de leitura de ninguém além de mim (e talvez??? das pouquíssimas pessoas que conhecem as gatas). A ateia é uma trilogia provocadora. Na sua opinião, a arte tem que provocar? Não. Não tenho a menor pretensão de ditar o que a arte tem ou não tem que fazer. Para mim, é uma questão de gosto. Cada um com a sua tara. Gosto que me provoquem e fico feliz quando noto que provoquei alguém. Você já me contou que Elena Ferrante foi uma de suas inspirações como leitor. Posso dizer, pelo pouco que a li, que ela se encantaria com essa história surpreendente de mulheres tão complexas. Conte-nos mais sobre as suas influências de personagens femininos na literatura. Narradores e narradoras são ferramentas literárias das quais o escritor se serve para produzir (ou não) determinados efeitos de sentido no público. Em boa parte dos casos, representam hipoteticamente, de forma mais ou menos realista, pessoas de carne e osso – quer dizer, mesmo que Capitu não seja baseada em uma mulher real, espera-se que Capitu aja dentro dos limites verossímeis em que podia agir uma mulher do século 19 dentro de tal e tal circunstância. Nesse jogo de representação, muita gente se confunde. Para mim, Isis e Julia não se relacionam em graus de plausibilidade ou verossimilhança com mulheres de carne e osso (nem, diga-se de passagem, com as minhas gatas); Isis e Julia se relacionam com outras narradoras e narradores, assim como Capitu se relaciona com outras personagens desprovidas de voz narrativa. Na vida real, pessoas reais não precisam se pautar (e não se pautam) por plausibilidade e verossimilhança. É óbvio (se não for, estamos perdidos) que o jogo literário de representação não existe e nunca existirá despregado da sociedade e das relações de poder dentro das quais ele foi composto. Por isso, cabe a quem escreve uma grande dose de responsabilidade. Deixo um trecho de sua escrita que gosto. Você não foge apenas dos estereótipos, mas também da forma convencional de escrita. Isso me agrada. “Planejo debandar, de São Paulo até jamais. Me acuso de frouxa, de fujona, de frígida, de fraca e só paro porque se me acabaram os adjetivos pertinentes em efe; não ando fria e evito me ofender em outra letra.” Como é o seu processo de criação? À base de reescrita. Ninguém nesta família morre de amor foi escrito quatro vezes de cabo a rabo; Amarás meu nariz brilhante, seis – o que me custou mais de mil horas de trabalho (escrevo com um cronômetro em cima da mesa). Neste exato momento, jaz impresso um conto de dez páginas ao lado do computador em que respondo essa entrevista; uma anotação manuscrita no canto superior direito revela: 12ª versão. Quando leio, fico entediado (às vezes, até nervoso, chego a falar barbaridades sobre o coitado do escritor) se a linguagem é preguiçosa, vaga, cansada, pouco consciente. Ao escrever, o primeiro leitor a quem quero agradar sou eu mesmo; por isso, trabalho a linguagem com o grau de paciência e zelo com que gosto que me tratem quando estou do outro lado a página. Seu livro toca em assuntos importantes e que provavelmente todo ser humano passa todo o dia em algum momento. Fala sobre o sadismo encontrado em horas de maledicência. Como o comportamento de alguns familiares perante uma noiva “órfã de mãe viva” no altar. Por que as pessoas agem assim? Porque é divertido (aprendi com a minha avó e com Proust que fofoca é gênero literário). Porque a pessoa atacada se despersonaliza (a maioria das agressões são levianas, como se não fossem ofender), assim quem ataca pode alegar que é menos babaca do que de fato é (“não fiz por mal”). Por vingança. Por inveja. Por medo de trocar de posição e passar a ser alvo dos ataques. Por complexo de superioridade. No caso em pauta (o da abertura de Amarás meu nariz brilhante), todas essas questões ficam explicitadas e potencializadas porque se trata de uma festa de casamento. Na nossa sociedade, casamento (assim como ter filhos) é visto como um accomplishment, coisa que, confesso, nunca entendi por quê. Por isso, comentários maldosos sobre casamentos ou filhos alheios nos dão a sensação de que os outros são tão fracassados quanto nós que fazemos os comentários. Ou seja, maledicência bem-feita tem efeito catártico. Mais um trecho que gostei foi sobre como pode parecer fácil aos olhos alheios ser filha de alguém. “A tia Rebeca despertava inveja nas adolescentes que não moravam com ela: a que não proibia nem vigiava, a que não punia. Ninguém testemunhará a meu favor caso eu represente queixa contra a Cármen por desacato à família na… tsc, na… como chama mesmo a base emergencial da Polícia dos Bons Modos, ali na Cerro Corá? E por que não? Quem vê pensa que não captaram o insulto… – Calma. É o jeito da Cármem...” O que faria Daniel para esclarecer ao parente essa relação em uma situação dessas? Nada. Na vida pessoal, tendo a ser recluso, arredio. Não dou satisfações a quem não as devo. Daniel, muito obrigada pelo seu tempo e escrita. Dá para dar um spoiler sobre o que podemos esperar no próximo volume? Eu é que agradeço, pela confiança da Laranja Original no projeto da trilogia. Quanto ao terceiro e último volume, posso adiantar que é uma prequela. Vai cobrir a juventude da mãe das narradoras dos primeiros dois volumes, desde os anos de faculdade até o momento em que abandona a fé e se declara ateia. Foto: Guilherme Beltrami

  • Entrevista Laura Carrillo Palacios - Livro: Fragor

    Laura Carrillo Palacios (Burgos, Espanha, 1993) é uma psicóloga especializada em género e migrações. Autora de várias investigações sobre a temática do tráfico humano e das pessoas refugiadas por motivos de gênero ou orientação sexual. Viveu na Bélgica, Bulgária e Mauritânia, onde pôde unir a psicologia com a ajuda humanitária. Em 2020, publicou El Baile de Los Girasoles, o seu primeiro livro de poesia, na editora espanhola Gato Encerrado. Nesse mesmo ano, ganhou o prémio no concurso de Arte Jovem: Jovens Artistas de Castela e Leão com o livro de poesia Las Mil Lunas de Mauritânia. Lançará no dia 15 de junho, às 15h, pelo canal do YouTube da editora Laranja Original, o livro de poesias Fragor. Laura, o seu trabalho como psicóloga especializada em género e migrações é muito bonito. Me fascinou a sua experiência em Mauritânia, país do noroeste da Àfrica, com mulheres que sofrem violências brutais como a mutilação genital. Conte-nos um pouco sobre como essas vivências influenciam a sua poesia. Muito obrigado, Renata, pelo seu interesse no meu trabalho. A verdade é que o fato de me dedicar à saúde mental no campo humanitário me ofereceu muitas oportunidades de aprendizado em diferentes áreas da minha vida, o que teve um grande impacto nos meus escritos. Por um lado participei de pesquisas psicossociais e na redação de artigos sobre grupos em situação de vulnerabilidade, com especial ênfase em mulheres e migrantes. Por outro lado uma voz poética emergiu há anos quando as realidades que conheci transcendem e despertam tantas emoções e certezas. Indo mais longe, acredito que o despertar espiritual que pode ser observado em alguns dos meus poemas é o resultado da lágrima que experimentei quando vi a injustiça e a crueldade deste mundo ao olhar através dos olhos desses sobreviventes da violência com quem trabalhei. Primeiro, foi a dor. Então a percepção de que essa dor não ia ajudar nada, nem para os outros, nem para mim mesmo; a cura é um processo muito longo e para mim faz sentido se for abordado não só do plano psicológico, mas também do espiritual. Quando a sabedoria do Todos Somos Um eclodiu em mim, comecei a interpretar a vida de uma maneira diferente. Menos da cabeça, longe do meu ceticismo habitual, e mais do próprio Eu. Muitas vezes eu esqueço essas lições, eu me enrosco novamente na agitação da mente e eu tenho que me reconectar. Além da meditação, ler e escrever me ajudam muito. A poesia é o grito da alma que nos desperta do sonho em que mergulhamos. Fragor - um ruído, um estrondo, um grito. O seu livro é um desabafo dos tempos atuais que nos geram tantas complexidades, resumindo-se bem na palavra “Fragor”? É uma pergunta muito boa. A sério, acho que é um excesso de tudo. Como disse, vivemos em tempos complexos, mas quando foram fáceis? Não há dúvida sobre o que acontece à nossa volta nos afeta e, se a nível cognitivo o interpretarmos negativamente, as reações emocionais e comportamentais que surgirão serão possivelmente dolorosas e não muito adaptáveis. No entanto, mesmo nas ocasiões em que tudo parece bem, a nossa mente gosta de boicotar essa paz e de procurar continuamente problemas. É preciso gerar pensamentos bons, deixar de encontrar complicações e propor possíveis soluções. Se tudo está bem como está, a sua própria existência está em jogo. Este barulho é o que quero dizer. O ruído mental que nunca cessa, até que finalmente o faça. Então, uma ruptura com o ego ocorre, o rugido emerge, o grito da alma que mencionei antes. Depois dele, verdade e calma. Fragor surge para dar voz a tudo isto, como uma continuação natural do livro de poesia Silente, de Sandra Santos. Sandra e eu nos conhecemos há muito tempo e sempre vimos como havia um contraste entre a poesia dela e a minha. O dela é sutil e delicado, e o meu sempre foi mais alto e mais barroco. Queríamos oferecer esta polaridade ao leitor. No entanto, percebi, enquanto escrevia, que também havia uma evolução na minha poesia. Em momentos de caos mental, a minha poesia era ruído, ruído, mas naqueles em que a minha mente alcançou uma maior ligação com o Universo, com o Único, com o Todo, também se tornou mais calmo e silencioso. Sofri e apreciei esta evolução. O seu livro abre lindamente com a frase: “A Ele, que o amor encarna”. Fale sobre ela? Esta frase é uma dupla dedicação. Foi escrito com o meu parceiro de vida, que me ensina todos os dias sobre o amor no reino do casal da forma mais doce possível. Mas não estou apenas a dirigir-me à sua pessoa, mas ao seu Ser, a parte sagrada que abriga e coleciona o verdadeiro amor. Não só o terreno e o familiar, mas o AMOR com letras maiúsculas para todos os seres do mundo. Esse amor não pode ser encarnado num nome próprio, mas no próprio Ser. Nele. Um dos trechos do seu livro me emocionou bastante e me lembrou a filosofia budista: “É quando a maré da vida nos faz balançar, na sua dança incerta, que as melhores coisas nos começam a acontecer. No entanto, se a dor não atingir o tutano, a roda de samsara recomeça, até que a tempestade arrase tudo. Debaixo da terra, a calma absoluta” É sobre saber lidar e encarar o sofrimento como forma de amadurecimento para enfim um possível encontro com a paz e sabedoria? Fale um pouco sobre a sua inspiração nesse trecho? Este trecho diz respeito a tudo o que mencionei acima. Quando sofremos e, de alguma forma, esse sofrimento nos obriga a decompor-nos para continuar, podemos receber certas revelações e apreciar a existência de uma forma mais fluida e saudável. Estamos mais receptivos para coisas especiais acontecendo, ouvimos mais a nós mesmos, aos outros, à natureza. No entanto, tudo é temporário. Quando começamos a nos sentir melhor, embalamos a concha humana novamente e enterramos muitas lições aprendidas. Não significa que não aprendemos nada, mas esquecemos a coisa mais importante. Respire. É preciso estar, ser. Amadurecer ajuda-nos a encontrar momentos de paz e sabedoria com mais frequência. Embora no livro eu fale de Verdade e Calma como um lugar definitivo para chegar depois de todo o processo de lidar com o sofrimento, a realidade é que muito poucas pessoas conseguem alcançar esse estado de nirvana. A maioria de nós só pode vislumbrar de vez em quando pequenos momentos de iluminação, que desaparecem novamente, consumidos pela ilusão da vida. Mesmo assim, acredito que devemos sempre caminhar com esse olhar consciente, fazendo do Amor o caminho e o destino. Outro trecho que me marcou bastante foi: “Germinei sementes em forma de canções e sorrisos que outros me deram” Me invoca a fase da evolução do ser, quando ainda não estamos prontos a seguir por nós mesmos sem que injetem sonhos na gente. Acha que nos roubam a alma quando deixamos que ditem regras? O parágrafo em si não se refere exatamente ao que menciona, embora seja uma ideia muito interessante. O que quero expressar é, simplesmente, que somos alimentados pelo que os outros nos oferecem. Como seres humanos, não podemos viver isolados ou nos criarmos sem a entrada dos outros. Somos a soma de todas as conversas, canções, leituras, risos, carícias que damos e recebemos dos outros. Para responder à sua pregunta - é muito perigoso e prejudicial ser forçado a respeitar regras em que não acreditamos e agir de uma forma que não seja coerente com os nossos ideais. Mas acho que não podem roubar as nossas almas. O que é a alma? Embora fale continuamente disso num sentido poético, não acredito na existência do ponto de vista judaico-cristão. Acredito no Eu, que é perfeito, eterno e invulnerável. Não pode ser roubado, danificado, apagado ou gerado. Está em todo o lado e em lugar nenhum. Então, mais do que roubar a nossa "alma", pode dificultar-nos a encontrar o Eu. Se vivemos num ambiente insano, capitalista e superficial, é mais difícil para nós ter a oportunidade de mergulhar no que é verdadeiramente importante. Esta sociedade inventa necessidades supérfluas que perpetuam consumos excessivos e antiéticos. Querem nos anestesiar. Se acordarmos do sono e começarmos a viver conscientemente, o sistema perde. Já pensou em musicar os seus poemas? Vi em muitos deles ótimas melodias, como no trecho: “A minha alma é um diálogo entre as estrelas e o meu umbigo.” Que bom que perguntou isso! É uma ideia que está à minha volta há algum tempo. Estou pensando em preparar um evento musical de poesia com violão em Burgos, a minha cidade natal, com o meu irmão, que é músico. Da mesma forma, quero fazer a apresentação de Fragor em Madrid com alguns amigos músicos. Estamos agora trabalhando nisso. Espero que saia um trabalho bonito! Seu livro está sabiamente separado em trechos: - I – “Antes da tempestade” - II – “O Ruído” - III – “Mas este fragor nos levará” - IV – “À verdade e à calma”. Nos leva à profundas indagações sobre o caminho da vida. Em alguns momentos, desoladores, e outros com bastante esperança. É lindo observar pela sua trajetória de vida a esperança na existência. Por isso, Laura, te agradeço. Fale sobre essa divisão de capítulos. Agradeço a você, Renata, por ter a sensibilidade para lê-lo. Suponho que muitas vezes oscilo entre o desespero e a esperança, mas felizmente as escamas acabam sempre por inclinar-se para o amor e a vida. Se eu for mais longe e me guiar pela filosofia do Todos Somos Um, noto que esta dualidade não existe. De alguma forma, tudo está contido em tudo. Escuridão e luz. Dia e noite. Saúde e doenças. Vida e morte. Não pode ser de outra forma. A divisão de capítulos resume tudo aquilo sobre o que temos comentado. O primeiro, Antes da Tempestade, reflete a tranquilidade que pensamos sentir depois de ter tido alguma experiência intensa. Adquirimos um certo grau de sabedoria, não há dúvida, mas acreditamos que percorremos um longo caminho quando ainda estamos longe de atingir a maturidade espiritual. A segunda parte, "O Barulho”, fica-se a saber que ainda estamos presos na roda da paixão, do desejo, do apego, da matéria. Ainda está a sofrer. A terceira parte é o Fragor, como o título do livro, a bola de máscaras acabou, mas estamos relutantes em aceitar isso e revelar a nossa verdadeira identidade. Essa resistência gera mais sofrimento do que qualquer evento traumático que nos pode acontecer. A quarta parte é novamente Verdade e Calma. Há uma evolução muito mais genuína, pois a dor foi aceita como uma parte inevitável da viagem. Tenho uma visão particular da ideia de Deus que não corresponde a nenhuma religião, mas com uma energia criativa da qual todos fazemos parte. Cada pessoa tem um nível diferente de consciência e tem que percorrer o caminho da libertação sozinho, mesmo que possa ser apoiado e inspirado por outros seres vivos. É nesta última parte que o ruído começa a cessar e o silêncio das cinzas emerge. É preciso urgentemente transcender? Krishnamurti Góes dos Anjos diz no seu maravilhoso posfácio: "Avançar significa deixar de lado, para o uso da vida prática, a nossa psique exterior e superficial, razão, pois só com a psique interior que está nas entranhas do nosso ser, seremos capazes de compreender a realidade mais verdadeira que está nas profundezas das coisas." Não gosto de determinar as necessidades dos outros, mas se há uma coisa em que todos concordamos, é que cada indivíduo precisa ser feliz. Que a felicidade não virá de coisas materiais, por mais que a sociedade não deixe de enviar mensagens erradas fazendo com que as pessoas acreditem nelas. Podemos ter muito dinheiro, fazer muitas atividades, ter corpos fabulosos, sucesso profissional, mas nada disso vai nos fazer sentir muito felizes. A única coisa que podemos fazer é começar a viver de uma forma consciente. Sentir o Eu. Nessa altura, deixaremos de precisar de qualquer coisa que não seja estritamente básica para a sobrevivência. Não é fácil manter o estado de consciência, mas alcançar momentos de lucidez já é uma conquista incrível que pode ter repercussões muito positivas no dia-a-dia. Faça-nos discernir o essencial do que não é. Transcenda o ego e o apego. Apenas ser! Laura, se me permite um spoiler, deixaria a seguinte frase: “Resgata o sagrado que há em ti”. É necessário esse resgate? Eu creio que sim. Claro que sim! Todos nós temos uma parte sagrada se prestarmos atenção – sempre está ali. Na realidade não é necessário resgatá-la, somente libertar a nós mesmos da ignorancia de não sermos conscientes da nossa existencia. Laura, muito obrigada pela sua arte e o seu tempo para responder essa entrevista. Fragor me comoveu bastante! Deixo um espaço para falar sobre o lançamento , projetos e qualquer coisa que queira. Eu que agradeço. Foi uma entrevista muito agradável, com muitas reflexões e aprendizagens. É um prazer poder aprofundar a mensagem que a poesia nos dá. Muitas pessoas não aproveitam o tempo para fazer isso e não conseguem apreciar, porque acham que é aborrecido, abstrato, inútil ou uma perda de tempo. Mas devemos ter sempre tempo para aquilo que acaricia a nossa "alma" e nos desperta da letargia. Quanto aos eventos, no dia 15 de junho temos um lançamento online e ao vivo do livro, também em formato bilíngue luso-espanhol, para não perder a essência! Haverá também vários convidados especiais. No final do próximo mês espero poder apresentá-lo também em Madrid e, depois do verão, em Burgos ou em outros locais. Quem sabe? Agora, depois de uma pausa após o regresso da Mauritânia, estou a trabalhar numa organização espanhola como psicóloga com refugiados e candidatos à proteção internacional. A intensidade da obra altera um pouco as energias literárias, mas estou a acumular experiências para as colocar no papel no futuro. Claro, é possível que o meu próximo livro seja um romance em vez de uma coleção de poemas. Vou mantê-los atualizados! Muito obrigado e um grande abraço. 😊 Para conhecer o livro Fragor, basta acessar: Fragor | laranja-original (laranjaoriginal.com.br)

  • Entrevista Aline Morena - Livro: Aline Morena por Hermeto Pascoal

    Aline Morena, gaúcha de Erechim (RS), é cantora, multi-instrumentista (piano, viola caipira, percussão corporal e pandeiro), compositora, professora de canto e bacharel em canto pela Universidade de Passo Fundo/RS. Criativa, já criou melodias para poesias de Mário Quintana, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade. Após realizar o show “Hermeto em Voz para Dançar”, só com a obra de Hermeto Pascoal, acabou conhecendo-o num workshop em Londrina, PR. A musicista, então, passou a excursionar com Hermeto Pascoal, trabalhando nas diversas formações musicais da banda pelo mundo, inclusive em duo. Após muitos shows, muitas gravações e anos como companheira do músico, Aline nos traz o livro Aline Morena por Hermeto Pascoal, que terá o pré-lançamento no dia 03 de março, pelo canal do YouTube da editora Laranja Original. Aline, descobri que é Morena em homenagem ao Dorival Caymmi. Aproveitando, gostaria muito que nos contasse sobre as suas influências, desde criança. Você estuda música desde os 10 anos e chegou até a cantar em igrejas. Conte pra gente; como e de que forma, tão nova, a música chegou em você? O nome artístico ALINE MORENA escolhi quando vim morar em Curitiba em 2002, por causa da música “Rosa Morena”, do Dorival Caymmi. Amo cantar e dançar e tenho uma alma muito alegre. Foi emocionante, através da sua pergunta, lembrar dessa música e o quanto ela me representa. Fica o meu compromisso de gravá-la no próximo CD. Apenas teoria musical é que comecei a aprender com 10 anos de idade, quando comecei a fazer aulas de piano clássico. Uma chatice enorme. Fiz dois anos. Aprendia fácil, tirava ótimas notas. Mas preferia ficar ouvindo minha amiga tentar tirar música de ouvido a ficar estudando as partituras. Aí, preferi ficar só cantando mesmo, primeiro no Orfeão da escola, aos 13 anos já comecei a ser profissional da música, cantando em casamentos, bodas... cantei por 5 anos no Coral Municipal de Erechim, que foi muito importante na minha formação musical, inclusive dediquei a faixa “Te Quiero”, faixa bônus do meu novo CD digital ALINE MORENA CONVIDA para o regente do Coral, o Zé Luis da Silva - in memorian. Não é a gente que escolhe a Música. Ela nos escolhe. A gente já nasce com ela. Depois, apenas coloca em prática o que carregamos dentro da gente. Você conheceu o Hermeto graças a um concurso para cantores pelo Conservatório de MPB de Curitiba. A partir dali se dedicou exclusivamente às obras do músico. Logo o conheceu pessoalmente e já começou a trabalhar diretamente com ele. Como se sentiu nesses primeiros contatos? Não foi bem assim. Não foi graças ao concurso que conheci o Hermeto. Conheci o Hermeto pessoalmente porque fui no workshop dele em Londrina, dia 19 de outubro de 2002, na área externa da Universidade de Londrina. E no dia seguinte, dei uma canja no show com seu grupo em Maringá. Dois meses após ter realizado o show “Hermeto em Voz para Dançar”. Esse show, sim, eu realizei porque passei no Concurso para cantores/as à época, dentro do projeto “Domingo Onze e Meia”, do Conservatório de MPB de Curitiba. No dia seguinte ao show em Maringá fui para o Rio com o Hermeto no intuito de ensaiar com o irmão dele, o Elísio, já que havia comentado com o Hermeto que estava chateada com os músicos que só queriam saber de trampo... que louco lembrar disso porque atualmente o pensamento de muitos músicos em Curitiba continua o mesmo... sobre como me senti nos primeiros contatos, senti logo a afinidade espiritual nossa, uma afinidade incrível e senti que não estava somente conhecendo pessoalmente um músico extraordinário, mas também um ser humano extraordinário. Aline, esse trabalho faz parte de um percurso da sua vida, de uma história de amor, de um trabalho sensível e bonito. Conte-nos como foi receber um presente tão especial? Essa convivência de 12 anos nossa como casal e 13 anos apresentando-me em todas as suas formações, ter gravado dois CDs e um DVD em duo com ele, ter produzido o DVD solo de HERMETO BRINCANDO DE CORPO E ALMA, ter sido dirigida por ele em meu primeiro CD solo “Sensações” e agora ter tido a participação dele numa faixa do meu novo CD digital ‘ALINE MORENA CONVIDA’, conversando com ele por telefone durante todo o processo de gravação do CD é uma dádiva, um privilégio da Deusa MÚSICA pra mim, e, ao mesmo tempo, gera muita inveja, o que faz com que tudo, na minha vida artística, demore muito mais pra acontecer. Muita gente que promove a cultura no Brasil tentando de todas as formas ignorar a minha existência... e o público, que nada tem a ver com as conveniências dos “ditadores” do mercado da Música no Brasil, acaba se acostumando com a porcaria que vomitam diariamente nas rádios ou achando que só existem os grandes artistas das gerações mais antigas e nada mais que preste... mas a minha resposta a tudo isso é que o pouco bem feito e com Deus é muito e o muito a qualquer preço, sem essência e sem escrúpulos, é nada! Sei que já criou melodias para poesias de Mário Quintana, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade? Literatura e música estão conectadas, na sua opinião? Pode nos deixar um dos trechinhos da obra desses artistas que escolheu para musicar? A poesia é uma arte completa por si só, bem como a música é uma arte completa por si só. Mas quando se unem, podem formar uma dupla maravilhosa! Musiquei poesias do Mário Quintana para o espetáculo Louzada, sobre a obra dele, a convite do Centro de Multimeios da Universidade de Passo Fundo, onde cursei o Bacharelado em Canto e a Licenciatura Plena em Música (não tenho o diploma dessa segunda graduação porque comecei a dar aulas logo e acabei não realizando o estágio da Licenciatura). Aí vão dois links pra quem quiser ouvir algumas dessas composições: https://www.instagram.com/tv/CJvtTgBFyQ9/?utm_source=ig_web_copy_link e https://www.instagram.com/tv/CJvuBkyl96r/?utm_source=ig_web_copy_link. Nesses casos, tive que me colocar no lugar do Mário Quintana pra sentir o que ele sentia e então musicar suas poesias. No caso do Carlos Drummond de Andrade, com o qual muito me identifico, musiquei a poesia “Mão Dadas” (vou cantar e tocar ela na live do dia 03/03 para conhecerem): Mãos Dadas (Carlos Drummond de Andrade) Não serei o poeta de um mundo caduco Também não cantarei o mundo futuro Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças Entre eles, considero a enorme realidade O presente é tão grande, não nos afastemos Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas Não serei o cantor de uma mulher, de uma história Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes A vida presente Conte um pouco sobre essa dupla "Chimarrão com Rapadura"? Surgiu sem qualquer premeditação minha ou do Hermeto. Essa resposta, melhor deixar pra live, com a presença do próprio Hermeto. Aline, vocês já viajaram o mundo. Como é a vida na estrada? Algum episódio inusitado para contar? Você gosta de excursionar? Viajar para passear em férias é bem diferente de viajar a trabalho. Nas viagens a trabalho, no caso dos shows, muitas vezes você acaba conhecendo apenas o hotel, o teatro e o aeroporto. E as quadras em volta do hotel ou do teatro... ambas as viagens são importantes, mas são situações diferentes. Amo viajar, principalmente, de carro e de trem. Desde 2018 você apresenta a peça infantil “A História Musicada do Menino Sinhô Hermeto Pascoal”, em parceria com o palhaço Propício, onde contam toda a trajetória do Hermeto, fazendo música com instrumentos convencionais e não- convencionais. Como é a experiência musical com o público infantil? Cursei Magistério como 2º Grau. Comecei a dar aulas de Musicalização em escola particular no Rio Grande do Sul com 18 anos de idade. Regi coro infantil e infanto-juvenil no RS. Depois, com o Hermeto, ajudei ele em muitos workshops para crianças. Desde 2018 venho realizando a parceria com o Palhaço Propício nos palcos e na vida, sendo que a primeira peça que criamos foi essa contando a história do Hermeto para crianças. Já realizamos quatro peças juntos: A HISTÓRIA MUSICADA DO MENINO SINHÔ HERMETO PASCOAL, O DESCONCERTO MUSICAL, UM NATAL BRASILEIRO e O PALHAÇO RABUGENTO REJUVENESCEU?. Também dou aulas particulares de Canto e workshops de Canto e Percussão Corporal para crianças, como no Nhundiaquara Jazz Festival, em Morretes/Pr, em 2019. Simplesmente amo trabalhar com crianças e adolescentes. Amo dar aula de Canto. Em 2010, veio o segundo cd em duo com o Hermeto, chamado "Bodas de Latão", para comemorar 7 anos de relacionamento. Como é a sensação de comemorar o amor musicando por aí? Não sei se existe algo melhor a comemorar que o AMOR. Amor em toda a sua abrangência. Aline, sobre o álbum digital e show Aline Morena Convida! Conte-nos de todo o processo de trabalho, gravação e por aí vai. A gravação se deu ao longo de cinco meses, em 2021. Aproveitei o período do auge da pandemia para gravar. Foram 50 convidados. Sou muito suspeita em falar. Tem música para todos os gostos. Estreei como arranjadora. O álbum se encontra nas plataformas digitais através deste link: https://tratore.ffm.to/alinemorenaconvida. A faixa-bônus encontra-se neste link: https://tratore.ffm.to/tequiero O vídeo- bônus, com o Palhaço Propício, encontra-se neste link: https://youtu.be/x3qmsVa-jLI Estou em plena organização dos shows de lançamento. Dia 29 de janeiro era pra ter acontecido o show dentro da programação oficial da Oficina de Música de Curitiba, no Teatro Paiol. Adiaram a Oficina inteira e assim que avisarem a nova data do show, divulgarei. Na live terei mais novidades sobre os demais shows. Aline, muito obrigada pelo seu tempo, deixo esse espaço para você nos informar sobre agenda, trabalhos, projetos e dizer onde o pessoal pode encontrar você nas redes sociais. Eternamente grata à editora Laranja Original por estar disponibilizando tão importante material de Música no Brasil, a edição brasileira do livro com duzentas composições do Hermeto intitulado ‘ALINE MORENA POR HERMETO PASCOAL’. Esse título se deve ao fato de as 200 composições do Hermeto serem dedicadas à Aline Morena, de ‘Aline Morena 1’ a ‘Aline Morena 200’! Nos vemos na live. Assunto e Música é o que não vai faltar

  • Entrevista Ian Uviedo - Livro: Café-teatro.

    Ian Uviedo é um jovem escritor, artista e amante da literatura. Seu mais novo projeto, o livro Café-teatro, será lançado pela editora Laranja Original. A live de pré-lançamento ocorrerá no dia 30 de Janeiro, a partir das 19:30, no canal do YouTube da Laranja Original, e contará com a presença dos convidados Marcelino Freire, Mário Bortolotto, Julia Codo e Helena Machado. O lançamento presencial será no dia 5 de fevereiro, das 16h às 00h, na Ria Livraria, na rua Marinho Falcão, 58, Vila Madalena. Ian já publicou o livro Éter, novela de narcolepsia (Ed. de Los Bugres, 2019). De forma independente, publicou uma dúzia de zines que variam entre contos, poesia, fotografia experimental e livro de artista. Já levou suas performances poéticas para diversos palcos do país e se apresentou ao lado de artistas como Juçara Marçal, Lúcio Maia e Paulo Lepetit, além de ter sido convidado para integrar a mostra Falares, pertencente ao acervo permanente do Museu da Língua Portuguesa. É editor da revista eletrônica RevistaRia. Faz experimentos audiovisuais e em 2020 teve uma série de videopoemas publicados na revista Saccades, da Califórnia. Também, em 2020, foi indicado pela revista Forbes como uma das personalidades de maior destaque da cena literária e poética brasileira com menos de 30 anos. Vive em São Paulo. Ian, Café-teatro é altamente visual e cênico. Trazendo em evidência o que existe de mais charmoso em São Paulo, como em trechos: “Ela morava em um prédio velho no centro de São Paulo, sem elevador, e quanto mais eu avançasse pelas escadas, quanto mais se dilatassem as pupilas, o escuro permanecia imóvel” – “As luzes do Viaduto do Chá, interceptadas pela sombra do Teatro Municipal”. Conte qual a importância dessa cidade na sua escrita? Como um paulistano que tenta viver a cidade de forma intensa, gosto de pensar que São Paulo está no centro de tudo o que escrevo. Quando digo “de forma intensa”, me refiro a coisas pequenas, mínimas, como se propor a fazer a pé todos os percursos, dos mais curtos aos mais longos. Isso inevitavelmente aguça sua sensibilidade para o movimento e para a dinâmica do espaço que você habita. O próprio Café-teatro, por exemplo, é um lugar real, espremido entre lojas e prédios no centro da cidade, que fica na mesma rua de um bar onde aconteciam leituras poéticas nas quais eu pertencia ao elenco fixo. Se eu me limitasse a cumprir o itinerário casa – bar de táxi, digamos, esse lugar, que não é nem um café nem um teatro, certamente teria passado despercebido. Colocar a cidade pela qual você se move como ponto de partida para a criação, numa perspectiva latino-americana (e essa conversa não é de hoje, a discussão vai de Jorge Luis Borges a Ricardo Piglia), é uma reivindicação do espaço “terceiro mundista” como elemento de alto valor literário. Quando nomeio cada um dos prédios, cada uma das ruas e cada um dos bairros a que o narrador se refere ao longo da narrativa, estou realizando o mesmo que autores como Henry Miller, Cortázar e Hemingway – para ficar em exemplos conhecidos – fizeram com sua Paris encantada, sem, no entanto, terem que passar pelo estranhamento. Gosto de pensar neste novo romance, entre outras coisas, como um livro sobre o desaparecimento, uma homenagem ao efêmero. E São Paulo, em seu ritmo desenvolvimentista e atropelado, repleta de cenários cujo único destino é a deterioração, configura a cidade perfeita para observar o esquecimento, uma cidade em que a única forma poética possível é a elegia. Inscrever histórias nessa paisagem é uma forma de fincar estacas na maré avassaladora que constrói prédios na mesma velocidade em que os destrói. Para mim, a frase definidora está em um dos mais emblemáticos sambas de um dos mais emblemáticos paulistanos, Adoniran Barbosa: pegamos todas as nossas coisas/ e fomos para o meio da rua/ apreciar a demolição. Apreciar a demolição. E assim escrever. É fácil notar a afinidade musical da sua escrita, começando pela epígrafe que abre o livro: “Depois caminhando sozinho/ lembrei da ciranda que meu pai cantava” - Gilberto Gil. Fale um pouco da relação do Café-teatro com as suas diversas facetas musicais. Inclusive, li ele inteiro já imaginando uma quantidade enorme de trilhas sonoras experimentais. Acho que o meu primeiro contato com a arte, ou melhor, com a expressão, como quase todas as pessoas, foi por meio da música. Lembro de ouvir Em Ritmo de Aventura, de Roberto Carlos, no toca-discos de meu pai e ficar encantado. Mais tarde, estudei numa escola onde havia um piano, e durante o intervalo, já que não tinha muitos amigos, passava vários minutos explorando as notas, observando os sons. Claro que eu não era como alguns dos outros alunos, que de fato sabiam tocar e sentavam-se, tocavam sonatas e recebiam aplausos dos professores e de outros estudantes. No geral, quando eu tocava, não demorava para aparecer alguém me pedindo para fazer qualquer outra coisa. Mas eu não parava, continuava lá, manufaturando acordes e harmonias, e hoje gosto de pensar na escrita como um desenvolvimento rítmico destes primeiros experimentos. Em muitos casos, sacrifico a concordância e a fluência narrativa em nome de uma “dissonância literária”, por assim dizer, quase um ruído, que ajuda a compor o clima de passagens específicas. É curioso que, para além da epígrafe de Gil, que é de uma música que amo do seu álbum de 1968, chamada O Pé da Roseira, outro vulto musical presente no livro é Bill Evans, o pianista canhoto de Nova Jersey. Evans é quase um personagem do livro; é um elemento subliminarmente fundamental para a narrativa, pelo menos da forma como vejo. Hoje em dia, a música é um fator indispensável para o meu trabalho. Não consigo escrever sem a sensação de isolamento proporcionada por um par de fones de ouvido. Agora mesmo, enquanto respondo a essa pergunta, escuto a I’m so lonesome that i could cry, de Yo La Tengo, mas quando estou escrevendo literatura, não consigo ouvir nada que tenha uma letra, de modo que a história de minha escrita é paralela à história de minha pesquisa de música instrumental. Café-teatro foi embalado ao som dessas músicas, e, pensando nisso, montei uma playlist no Spotify para compor uma sugestão de trilha sonora do livro. Ei-la aqui. Falando em cênico e musical, gostaria um dia de transformar Café-teatro em áudio-visual? Se o Rogério Sganzerla ou o Luís Sérgio Person toparem, vamos nessa. A relação afetiva do personagem principal com a pequena e antiga máquina fotográfica de seu pai é altamente interessante, como no trecho: “Mas o pensamento quando é afetivo só vaga, indiferente às imposições lógicas”. Como se o olhar dele como fotógrafo pudesse retratar um pouco o peso de um passado. Conte-nos sobre a relação do personagem com a antiga máquina fotográfica e as lindas lembranças com o Quero-Quero, o amigo imaginário, entre outras? O Café-teatro é estruturado em três tempos paralelos que confluem para um mesmo ponto e são narrados por um único personagem. Primeiro, temos a história do narrador com Lígia; depois, suas memórias de infância e adolescência; por último, acompanhamos a forma como desenvolveu seu trabalho de fotógrafo. A câmera, uma Olympus 35, é, acredito, o único objeto que atravessa as três instâncias, justamente porque surge como um elemento simbólico da ideia de testemunho. Além disso, a máquina – e isso é só uma leitura – metaforiza a hereditariedade do olhar, uma vez que é passada de pai para filho. No momento em que decidi que o narrador seria um fotógrafo, foi necessária muita pesquisa, colhi diversas informações a respeito da linguagem fotográfica e da mecânica de câmeras, que estão diluídas ao longo do romance. O livro é repleto de ensaios sobre fotografia, um tema que me interessa muitíssimo. Lembro que um dos pontapés iniciais para começar a escrever o Café-teatro foi a fotógrafa norte-americana Vivian Maier, como sua biografia podia ser usada para explorar temas tão caros a este autor: o anonimato, o desaparecimento, o registro do fugaz. No fim, Maier acabou nem aparecendo, mas penso nela como mais um espectro ao redor deste trabalho. Quem conhece a história dela, sabe que isso faz sentido. Para o personagem, a Olympus é a um só tempo um documento de identificação e um caderno. Susan Meiselas, outra fotógrafa norte-americana, disse certa vez que, ao longo de sua trajetória profissional, a câmera funcionou como um passaporte com o qual ela podia entrar em lugares de onde, sem a câmera, seria rapidamente enxotada. O fotógrafo, na sua função de registrar, já parte de um lugar de distanciamento, e acredito que o romance trate bastante disso. Quanto ao quero-quero e ao ensaio sobre o irmão imaginário presente no sexto capítulo, esses são elementos narrativos que pertencem ao campo da imaginação e da construção literária. São parte de um conjunto que tento fazer funcional quando olhado em sua integridade, as imagens correspondendo umas às outras, de forma que seria difícil isolá-los e examiná-los um por um. Posso dizer que a memória é outro tema central no livro. A memória, a distorção da memória, a realidade distorcida por meio da lembrança e o registro como forma de espelhar o tempo em retrospecto. O protagonista se apaixonava pelas mulheres ou pelas fotos delas? É linda a forma como ele era capaz de transformá-las através da lente. Incapaz de apaixonar-se, patologia explicada ao longo do romance por meio de flashbacks de sua infância e adolescência, este perso-narrador se relaciona com as imagens que ele próprio produz. Há uma passagem em que isso fica muito claro, como sua paixão é pela construção de uma imagem irreproduzível, uma paixão tamanha que o faz sentir-se suspenso sobre as tendências humanas do desejo e do tesão. A única mulher por quem se apaixona, Lígia, é a única mulher que não se deixa registrar. Em alguns momentos pude lembrar de Rubem Fonseca. Existe influência? Conte sobre as suas influências? É interessante você dizer isso. Rubem Fonseca foi um daqueles autores que me influenciaram sem eu nem perceber; minha relação com o autor mineiro é bem pouco profunda: tirando alguns contos de uma edição antiga de A Coleira do Cão, não li nada dele. Curiosamente, algumas das pessoas que leram o Café-teatro antes da publicação, pessoas que confio e sabia que seriam leitoras a um só tempo generosas e sinceras, falaram a mesma coisa: me lembrou muito Rubem Fonseca. Quando o Mário Bortolotto escreveu no prefácio que meu livro tratava-se de “literatura brutalista”, engrossou ainda mais essa percepção, tornando-o um romance, digamos, fonsequiano. É claro que agora preciso ler Rubem Fonseca, identificar-me na grandeza de sua obra que, de tão influente, acabou influenciando escritores que nem o leram. Por outro lado, creio que há dois grandes temas no Café-teatro (e em tudo que escrevo) que eram caríssimos ao autor de O Cobrador: o erotismo e a violência. O erotismo e a violência que são, afinal, temas muito latino-americanos, e a partir daí posso começar a falar sobre as minhas influências, porque nesse momento a minha pesquisa literária está focada na literatura latino e hispano-americana. Admiro, então, autores contemporâneos como Fernanda Melchor, Samanta Schweblin, Silvia Molloy, Mario Bellatin, Alejandro Zambra; e autores do século XX, como Roberto Bolaño, Tulio Carella, Ricardo Piglia, Silvina Ocampo, Levrero; enfim: parece pretensão dizer que eles me influenciaram, porque é claro que ainda dou meus primeiros passos num campo onde estes vultos correm sem dificuldade, mas certamente são autores que me inspiram, porque pensam a linguagem a partir da perspectiva latino-americana, uma compreensão que, ao que me parece, ainda falta à literatura brasileira contemporânea, com as exceções de praxe. E, claro, sou influenciado o tempo todo por filmes, músicas, por frases soltas que capturo no ar dessa cidade, nas suas esquinas, nas suas zonas cinzentas. Um retratista rouba almas? Espero que não, mas acho que sim. Ou vice-versa. Ian, gosto do seu palavreado e escolha elegante das suas palavras. Café-teatro tem um refinamento na escrita pouco encontrado. Como se dá o seu processo de escrita e escolha das palavras? O primeiro trabalho é o trabalho frasal. A frase, o tom, surgem antes de tudo, antes até de eu saber sobre o que será a história. Creio que isso está relacionado ao prazer da escrita, ao apreço pela linguagem. Todo livro, afinal, é sobre as possibilidades e os limites da linguagem, e o meu não é diferente. Quando começo uma narrativa, nunca sei como vou direcioná-la, tudo o que tenho são um punhado de imagens, inquietações e dúvidas, de forma que não há pressa e posso ir talhando as frases com todo o tempo do mundo. À medida que a trama se revela e a voz narrativa se pronuncia, o léxico se afunila. E quando termino o livro, com essa voz já definida, o releio tesourando ou substituindo adjetivos, verbos e até substantivos que me parecem dissonantes em relação ao narrador. A forma como uma pessoa se relaciona com a realidade se dá por meio de suas referências, sua biografia, e parte do trabalho do escritor é descobrir quais são as palavras, as construções que sobram de uma vida. Ian, pensei inúmeras vezes em uma forma de falar sobre as fotografias sem dar spoiler. Não consegui achar palavras. Só posso, aguçando a curiosidade do leitor, dizer que foi uma das coisas que mais me apaixonou no livro. Deixo em aberto, para a sua decisão de falar um pouco sobre ou deixar como surpresa. Como assistimos o jogo pela partida, não pelo resultado, não acredito muito em spoilers, mas posso manter a presença das fotografias ainda obscura para o futuro leitor. Posso dizer, porém, que a ideia das fotografias surgiu depois que o livro já estava pronto, a trama terminada. As fotografias são, então, inserts poéticos na narrativa que dão ritmo e separam o livro em partes sem aquela burocracia de parte 1, parte 2, ad infinitum. Todas as fotos estão associadas a momentos chaves da narrativa, creio, mas isso nem sempre se dará de forma explícita. Seja como for, foi só uma ideia que tive. Se eu soubesse de onde vêm as boas ideias, como disse Leonard Cohen, eu iria lá com mais frequência. Café-teatro é para ser lido atento às suas instruções sobre as luminosidades cênicas que nele existem, como no trecho: “Hoje não sei por que, voltando a esta visita, me atenho tanto aos detalhes da luz. Talvez seja porque de algum modo aquela relação específica entre luminosidade e escuridão fosse uma síntese de tudo o que aconteceria entre nós”. Você consegue nos transportar para essa questão facilmente. Fale sobre isso, da importância da luz no seu trabalho? Traindo minha obssessão pela literatura latino-americana, um dos meus autores prediletos e um dos mais importantes para a minha formação, é Scott Fitzgerald. Suave é a Noite foi um dos livros fundamentais para que eu me interessasse pela escrita. Depois disso, lembro que li de cabo a rabo o Estranhos Embora Íntimos, sua coletânea de contos que deve ter umas 700 páginas. Uma das coisas mais impressionantes a respeito de Fitzgerald, na minha opinião, é a forma como ele constrói o clima de suas passagens por meio da iluminação. Próximo como era do cinema, a aproximação faz sentido, indo relacionar-se também com o impressionismo, movimento artístico que prezava o movimento da luz e influenciou tantos cineastas, como por exemplo Akira Kurosawa. E o que Fitzgerald me ensinou, ou pelo menos o que eu entendi, foi o seguinte: não descreva o objeto por meio do próprio objeto: descreva o objeto por meio da luz que incide sobre ele, tornando-o efêmero e, portanto, único. Claro que isso não é uma regra, e sim uma espécie de técnica que funciona para mim mas que para qualquer outra pessoa pode soar bobagem. Falando mais especificamente do Café-teatro, o personagem é um fotógrafo, e, como falei na pergunta 8, sua forma de relacionar-se com as coisas que vê é através da fotografia, isto é, da luz e da sombra. E isso é algo que me interessa, e que sei que é presente na obra de Rubem Fonseca (para me estender um pouco sobre a pergunta 6): a relação das pessoas com o seu ofício, outro tema do Café-teatro, indicado, em parte, por essas descrições sutis que você percebe a respeito da luminosidade e da escuridão. Vejo o seu livro com passagens Noir, cenas em preto e branco, músicas para bons ouvintes, arte - Parabéns, pela riqueza de detalhes tão artísticos. Deixo esse espaço para que conte sobre o lançamento, onde o leitor pode te encontrar e sobre qualquer projeto que queira divulgar. Obrigada, pelas suas respostas e pelo seu livro encantador. Eu que agradeço, Renata. Sorte do escritor que tem uma leitora feito você. Obrigado pela leitura atenta e atenciosa. Acho que não há muito o que ser dito, além de que dia 30/01, às 19h30, teremos um pré-lançamento virtual com Marcelino Freire, Mário Bortolotto, Julia Codo e Helena Machado, escritores que admiro demais; e dia 05/02 um lançamento presencial na Ria Livraria, se tudo der certo, das 16h às 00h. Todos os detalhes sobre o lançamento podem ser encontrados no meu perfil do instagram: @ian_uviedo e quem quiser falar comigo é só escrever no e-mail: ianuviedo09@gmail.com. É isso aí.

  • Entrevista Beatriz Aquino - Livro: Anne B.

    Beatriz Aquino, além de escritora, é formada em Publicidade e Propaganda e é atriz de teatro. Dia 15 de dezembro, ela lançará o livro Anne B., pela editora Laranja Original. Beatriz também é autora dos livros: Apneia (romance), A Savana e Eu (crônicas) e Caligrafia selvagem (poesia). Colabora em diversos sites, jornais e revistas, como o jornal O tornado e a revista InComunidade, de Lisboa. Atualmente vive em Portugal. Anne B. abre lindamente com o escrito do personagem central: “Diga-me Francisco, para onde voamos quando o mundo se torna cruel e perigoso? Para longe? Para o alto? Não. Para dentro, não é? Para dentro. Vamos a isso então”. Esse mergulho é a vida do livro. Conte como foi trabalhar com questões tão profundas e psíquicas da protagonista. Anne B. é uma síntese de várias mulheres que observei durante a minha vida. Suas dores, suas buscas, seus sonhos e medos. Está tudo ali, nesse longo diálogo que a personagem tem consigo mesma, usando por vezes um interlocutor que se chama Francisco. É como uma conversa diante do espelho. Naqueles momentos onde fica impossível mentir para o mundo e principalmente para si mesmo. São momentos cada vez mais raros, pois a vida tem nos exigido demandas que nos afastam do contato com o nosso interior. Esse mergulho da protagonista é uma busca por respostas e também por um modo de conseguir continuar fazendo perguntas. É uma busca pelo entendimento do amor, pelo entendimento da existência humana. Uma procura pela hora mais clara onde a aceitação das coisas nos chega e nos traz paz. “A hora mais pacífica.” Como diz o subtítulo da obra. Mas aviso que o livro não traz soluções. Ele é na verdade uma constatação da dor que carregamos por simplesmente sermos humanos. É um relato de como alguém lida com suas dores e alegrias. De alguém que busca, através da literatura, um amplo alcance do entender e do sentir. O Francisco é um personagem muito importante e presente, apesar de praticamente um ser espectral. Às vezes nos parece até imaginário. Fale um pouco dele para nós. Francisco é o homem idealizado. Um amor impossível ou não correspondido. É um exemplo de cisão entre a mulher e o homem. Clássico dilema romântico. O desencontro entre dois seres que querem se encontrar. Esse hífen-abismo que nos separa desse outro gênero que tantos nos maravilha e nos assusta. Gosto da ideia de ter uma mulher conversando com o homem que ama. Admitindo o que sente, como gostaria de viver ao lado dele, como planeja o futuro, o que a faz ter medo. E foi somente nesse formato de carta – pois o livro inteiro é como uma longa carta que Anne B. escreve para Francisco – que consegui encontrar essa franqueza. Acredito que se existissem diálogos no livro, de algum modo essa mulher corromperia seus sentimentos em prol dessa comunicação. Não somos honestos quando nos comunicamos diretamente. Por isso precisamos de subterfúgios. Uma carta é ao mesmo tempo um diálogo com o outro e também um exercício solitário onde temos a liberdade de abertura profunda de sentimentos sem o perigo da interrupção ou do julgamento. Beatriz, você também escreve poesia. Como você transita nessas duas vertentes – prosa e poesia? Não vejo grande diferença entre as duas. A poesia, a prosa e o romance são apenas modos de contar estórias. O sentir é o mesmo. Talvez na poesia o sentido fique mais condensado, mais hermético. Por isso ela possui mais força e de certo modo mais beleza. Mas gosto muito da prosa. Pois ela é um dilúvio, um deixar correr. Gosto da espontaneidade das palavras que jorram e fazem o seu percurso à revelia do desejo do autor. Gosto quando sou apenas testemunha do que escrevo. Quando apenas atendo a essa força maior. É quando a mágica acontece. Claro que o mesmo pode se dar na poesia, mas somente se ela também for espontânea. Desconfio de autores que se debruçam por meses em um poema lapidando-o em busca de uma conformidade estética. Se isso não interferir na essência do que se quer dizer, tudo bem. Do contrário, se estará apenas fabricando beleza. E não sei se isso é o bastante. Sou muito intuitiva na minha escrita. Respeito muito o fluxo e até mesmo os meus erros durante o processo. Porque um livro é um processo do sentir, um processo do entendimento do autor que também está em busca, como todos os seres humanos, por um sentido para a vida. Não é e não deve ser nunca uma obra fechada. Ele deve ser uma janela aberta para outros pensamentos. Não é raro meus personagens pedirem ajuda ao leitor. Afirmarem que estão perdidos. Que sentem medo. É o meu modo de apertar a mão dos que me leem. Como atriz, você considera que o autor tem que entrar no personagem ao escrevê-lo? Acho que ele precisa no mínimo ter empatia. E muita compaixão. Os personagens são espectros que batem à nossa porta. São uma amálgama do que vemos pelas ruas. De alegrias e tragédias vividas pelas pessoas à nossa volta. Acredito que no inconsciente coletivo exista uma enorme complexidade de expressões clamando por vida e voz. Esse é o trabalho do autor. Dar forma e voz para essas pessoas. Que são muito vivas, não se engane. E podem trilhar seu próprio caminho uma vez que lhes for dado espaço. O autor ou o ator funcionam como uma espécie de embarcação para essas ideias. E essa embarcação precisa ser ampla e generosa para que ali todos vivam sem preconceitos e barreiras. O fato de ser atriz me permite uma proximidade maior com os personagens. Que trazem também um pouco de mim. É a minha voz falando outras vozes. Assim é o ofício do intérprete do sentir. A protagonista escancara todo o seu interior. É nítido notar a forma como ela afirma ser necessária a paz. Você acha, que em tempos turbulentos, esse sentimento vira quase uma questão de sobrevivência? Sim. Sem dúvida. Quando pequena ouvi uma música chamada “Poema”, que foi escrita por Cazuza e interpretada pelo Ney. E nela tem um trecho que diz: “De repente a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa morna e ingênua que vai ficando no caminho”. E aquilo me deu um clique. Eu era muito nova, mas ali compreendi o dilema da humanidade. Essa busca por um estado de espírito onde experimentamos a paz e conseguimos ver a beleza das coisas. Mas essa hora sempre nos escapa, pois somos vorazes. Os livros são pontes entre o caos que vivemos e essa hora mágica do entendimento e da constatação do belo. De que somos capazes de construir o belo mesmo que seja apenas dentro de nós. E os livros também são um relato da grande angústia humana que se debate entre o sublime e o animalesco. Nesse novo livro tem uma frase que diz que os nossos filhos viverão essa grande hora, eles conseguirão segurar os minutos de beleza que escaparam de nossas mão bárbaras. Um livro é um testemunho dos tempos que vivemos. É também um pedido de ajuda. E hoje em dia nunca se entendeu tanto a importância da paz para nossas vidas. Tem uma frase que achei tão forte e linda que eu gostaria que falasse sobre ela: “A mulher quando ama se santifica”. É. A mulher é um bicho muito doido, não é? Tem um pé na santidade e outro no profano. Que nem é profano, mas que é algo muito visceral e profundo e que por vezes causa medo. Porque ainda não tem nome. Ela possui essa capacidade de amar sem limites. O amor de mãe por exemplo é uma coisa maravilhosamente assustadora. E a mulher não ama de forma muito diferente os homens como ama ou amaria seus filhos. Isso assusta. A mulher quando ama quer criar beleza, harmonia. Ela quer transformar o mundo com o seu amor. Por isso ela é responsável por carregar a vida. É uma potência. E tudo nela está conectado. Diferente dos homens, ela não possui divisões entre o desejo e o sentimento. E isso, claro, pode trazer muita dor. Principalmente nos dias de hoje onde o excesso de individualização está massacrando o que há de mais bonito nas mulheres. Sua subjetividade, sua essência intuitiva. Não separo o amor do divino. Por isso a frase. A mulher quando ama quer afagar o pés dos anjos. E deseja que seu companheiro faça o mesmo. Ela não aceita menos que isso. A personagem nos dribla a todo momento com questões psicológicas bem profundas. Num trecho que expõe bem essas questões, ela fala: “Eu tinha as minhas falhas. Andava manca, como ainda ando por aí, não queria que visse esse meu lado deficiente e, por isso, te dava um lado ainda pior”. Fale um pouco sobre isso. Essa é a beleza do livro. Uma mulher que se despe e admite ser falha. Porque a redenção nem sempre vem com a nossa vitória sobre o mundo ou sobre nós mesmos. Ela também nos chega na compreensão profunda de nossa incompetência e fragilidade diante do todo. Essa também é uma hora muito bonita dentro de nós. Nesse momento do livro, ela constata que ao tentar dar o melhor de si acaba por dar um lado ainda pior. Acredito que isso acontece porque a pressão do êxito nos massacra. Desde pequenos somos treinados para o sucesso. Aprendemos que para ser feliz precisamos vencer. Quando esquecemos que perder também é uma vitória. Uma vitória sobre nossas ilusões. Sobre a imagem daquilo que entendemos como ganho. Acredito que seria mais proveitoso e bonito se as relações fosse pautadas no exercício do entendimento amplo de si e do outro. Porque é para isso que elas servem. Deveríamos saber que nesse processo muita dor pode surgir. Podemos machucar e sermos machucados. E isso deveria ser acordado desde o princípio. Mas todas as nossas relações bem como nossa ideia sobre felicidade e vida estão carregadas de conceitos e ilusões. Por isso tanto sofrimento e rejeição. Queremos o amor dos filmes. Sem passar pela linha de edição. O livro é um convite a essa abertura. A falarmos com franqueza. Para você, quem são Anne B. e Francisco? Anne B. é a mulher que eu cruzo na rua, que anda de cabeça baixa, entregue aos seus pensamentos. É também a mãe que ri com o filho no parque e que ao mesmo tempo se preocupa com ele. São essas mulheres que eu vejo pelas cidades e que não tenho coragem de perguntar o que sentem. Ela é um pouco daquilo que entendo o que é ser uma mulher no mundo. Com seus medos e sonhos. Uma mulher que hoje é solitária, talvez mais que suas antecessoras, porque ousou sonhar alto e por isso é automaticamente exilada do mundo. E precisa abrir, de novo e de novo, o seu próprio caminho no mundo. E ela é principalmente uma mulher que ama. Que ama muito. Mas que não faz ideia do que fazer com isso. Já o Francisco é esse ser distante, que ela não compreende. É a personificação do abismo entre os dois gêneros que comentei no início. É o homem que feriu. Que partiu sem dar explicação. É o que amou. Que traiu. É o pai ausente. É o que nos fere e não nos explica o porquê (talvez porque ele também não saiba) e por isso deixa esse grande espaço dentro de nós. O livro tenta falar desse encontro não apenas entre Anne B. e Francisco, mas entre esses dois seres tão complexos e diferentes, e que nasceram para esse encontro. Beatriz, fale um pouco sobre algum livro com esse teor psicológico que já tenha mexido profundamente com você. Me lembrei de Laços de família, da Clarice Lispector. Amo Clarice. Aprendi com ela essa possibilidade de escrever de dentro pra fora. Nunca começo um livro estruturando-o. Sento e deixo a coisa acontecer. Claro que para isso aconteceu primeiro um longo processo. Procuro estar atenta ao sentir que está à minha volta. Trabalho arduamente para me manter fiel aos meus princípios. Enfrento guerras cotidianas para me manter genuína. É essencial que o escritor viva o que escreve ou que pelo menos se entregue profundamente ao que está escrevendo. Não separo o que sou do que produzo. Meus livros são um reflexo automático das minhas questões. Não tomo convicções emprestadas. Não tento entreter. Faço um esforço diário para ir na direção contrária e me proteger desse grande manto de anestesiamento coletivo que abraça a humanidade. Boas leituras são então essenciais. Gosto muito de A Obscena Senhora D., da Hilda Hilst. Talvez ali aprendi a escrever sem pudores. Água Viva, de Clarice, também me inspirou a fazer esse mergulho interior. Quando falamos com a verdade, tudo é possível. Não há feio ou bonito. Mas o que mais aprendi com esses autores é que todos viveram uma vida de entrega ao que acreditavam. Eram, antes de serem escritores, pessoas fascinantes. A escrita era apenas um modo de eles expressarem suas riquezas internas. Acredito ser essa a missão humana. Alcançarmos o nosso lado mais sublime através de nossas dores e possibilidades. A experiência humana ainda é a coisa mais interessante que existe. Beatriz, muito obrigada pelo seu tempo. Anne B. nos faz sair da leitura de forma diferente. Um mergulho profundo e poético na alma de uma mulher. Uma viagem necessária. Obrigada! Deixo aqui um espaço para você falar sobre o lançamento, onde encontramos o seu trabalho (redes sociais) e o que tiver vontade de dizer. Agradeço muito pelo interesse. O livro será lançado no dia 15 de dezembro, às 19h, na página do Facebook da editora Laranja Original: https://www.facebook.com/laranjaoriginal. E meus trabalhos podem ser encontrados no Facebook.com/beatriz.aquino.77, no linktree /https://linktr.ee/beaaquino e também no Instagram @beaaquinoatriz. Entrevista: Renata Py Foto: Arquivo pessoal da autora.

  • Entrevista Daniel Knight - Livro: Ninguém nesta família morre de amor.

    Daniel Knight, radicado em São Paulo desde a adolescência, nasceu em Guaxupé, sul de Minas Gerais, em 1988. Bacharel em Letras pela USP, fez parte da equipe inaugural da editora Tordesilhas (2011-2012) e traduziu, dentre outros títulos, Um amor de Swann, de Marcel Proust. Escreve em inglês, francês e português. DK lançará pela Laranja Original, a partir das 19:30h de 10 de dezembro (não por coincidência, aniversário de Clarice Lispector), o romance Ninguém nesta família morre de amor, parte da trilogia A ateia. O evento ocorrerá on-line, no canal da editora no YouTube. Daniel, nas primeiras páginas do seu livro o leitor já é avisado: “A ateia é uma única história esparramada em três romances, uma trilogia desmontável, que pode ser lida em qualquer ordem”. Fica, realmente, a vontade de ler mais. Conte um pouco sobre essa ideia de trilogia que pode ser lida, inicialmente, por qualquer volume. Ninguém nesta família morre de amor se concentra, sobretudo, na relação da narradora, Julia, com a mãe, já idosa ou quase. O volume seguinte passará a voz narrativa para a irmã da Julia, Isis, no dia da morte da mãe. O terceiro volume tratará da juventude da mãe. Fiz com que a trilogia fosse “desmontável” porque tive medo de que ninguém se propusesse a ler um romance de 500 páginas de um ilustre desconhecido e de que, talvez, eu não conseguisse encontrar uma mesma editora para publicar os três volumes; portanto, não ler um deles não deveria atrapalhar a leitura dos outros. No entanto, é possível que a estrutura fosse a mesma ainda que eu tivesse começado a escrever já com contrato assinado. Quanto menos estanque for o texto, melhor. O seu livro nos mostra um personagem central feminino com muitas questões sobre a sua própria identidade e a maternidade – tanto em relação com a sua mãe como a relação com a sua filha. Como foi encarar um personagem com questões tão femininas? Divertido, desafiador e frustrante, como encarar qualquer personagem. Para mim, escrever como mulher sendo homem é fundamentalmente um recurso literário. Poderia ter escrito como uruguaio sendo brasileiro ou como marciano sendo terráqueo. Tudo depende do jogo de verossimilhança – é uma mulher crível, é um marciano crível? Isto posto, não me eximo de responsabilidade em relação aos meus personagens, muito menos aos grupos socioculturais por eles acionados. Ou seja, se vou escrever sobre um indiano de mentira, seja na primeira ou na terceira pessoa, me sinto obrigado a não reproduzir estereótipos negativos, racistas ou reducionistas sobre indianos de verdade. A relação mãe e filha nos é mostrada de uma forma interessante. Nos faz questionar a obrigatoriedade que a vida já nos impõe de amar nossos pais, mesmo que não haja tal sentimento. A sua personagem assume isso sem a menor culpa. Fale sobre isso. Acho que escritor tem obrigação profissional de expor tabus e de tentar buscar aberturas possíveis para discussões e reinterpretações desses tabus. É o nosso juramento de Hipócrates, sempre falar “pera aí” quando alguém aparece com uma verdade mais contundente que a previsão do tempo. Quanto à personagem assumir sem culpa que não gosta da mãe, discordo da sua leitura, que permanece totalmente válida. Para mim, Julia se remói em culpa, por isso não consegue cortar os laços com a mãe. Ela acredita no tabu. Ou não acredita, mas tampouco consegue superá-lo. Quem tenta superá-lo, mais por raiva que por consciência e autoconhecimento, é a irmã. Deixo aqui uma das frases do livro que me tocou – “Quem nunca quis o impossível perdeu uma das experiências que distraem a morte.”. Acha que enganamos a morte quando estamos envolvidos nos planos de realizar desejos? Eu, não. Ninguém engana a morte, nem por um segundo. Minha narradora, Julia, discorda de mim. Daniel, você já está no caminho literário faz um tempo – Como foi ter a honra de traduzir Proust? Mais tortura do que honra. Antes de tudo, Proust é, para mim, o maior prosador da história. Aprendi um absurdo sobre compor um texto literário e sobre os idiomas em questão no processo tradutório. Vem, por exemplo, desse momento a minha fascinação por um narrador que declara coisas que ele não tem como saber – o narrador em primeira pessoa de Um amor de Swann reporta palavra por palavra diálogos que não ouviu e pensamentos íntimos de outros personagens. Apesar dos ensinamentos e do prazer que o texto me proporcionou, um autor clássico com uma obra dessa importância traz consigo uma tradição imensa. Fiquei perplexo por estar executando um trabalho anteriormente dado a gente como Mario Quintana, Carlos Drummond e Lydia Davis. Passei uma semana encarando a tela do computador, paralisado. Além da tradição, um autor desse porte gera sentimento religioso nos meios literários, sobretudo na academia. A editora enviou o livro a um professor de uma renomada universidade, solicitando um posfácio. Ele respondeu que se recusava a ler a nossa tradução porque a do Mario Quintana era “insuperável”. Me furto a mencionar o nome desse senhor e a indicar a faculdade onde leciona para que eu possa ficar à vontade para dizer que ele é uma grandessíssima besta e que tenho dó dos alunos para quem ele grasna que existe tradução “insuperável”. O livro abre com o seguinte agradecimento: “Para Lívia e Sarah, que reviraram lixeiras da Rua Augusta atrás destas páginas. E para a Rua Augusta, que devolveu nem um mísero capítulo”. Nos conte sobre essa história? Em um restaurante da Rua Augusta, três invisíveis roubaram minha mochila sem saber que ela continha a única cópia, manuscrita, de um romance em fase final de produção. Se soubessem, teriam roubado do mesmo jeito, não se iluda. Por dois meses, estive certo de que levaram meu talento junto com o livro; não consegui escrever uma linha, fiquei péssimo, sem energia para nada. No fim desse período, vi na Av. Paulista uma mulher com um cartaz protestando contra a bomba atômica brasileira. Senti que, se ela não existisse, eu poderia tê-la inventado; isso me deu confiança para retomar as atividades. O romance roubado vem a ser o volume de A ateia que muito provavelmente será lançado por último. As duas boas almas a quem Ninguém nesta família morre de amor é dedicado saíram Rua Augusta abaixo literalmente metendo a mão nas latas de lixo, no caso de os ladrões terem se livrado da parte invendável do conteúdo da mochila. Além da trilogia, outros projetos em mente? Tenho três peças de teatro, duas em português e uma em francês (que pretendo traduzir), já terminadas. Alguns contos que podem vir a ser uma coletânea. Pelo menos mais três romances com outros personagens, mas dentro do universo de A ateia. Depois, planejo trocar de idioma principal de publicação, provavelmente para inglês. As questões sobre religiosidade, família, incesto são bem tocantes no livro. Colocadas, inclusive, de forma bem verdadeira pela personagem. Daniel, você acha que é necessário quebrar alguns estereótipos na literatura ou na arte em geral? Me espanta quando as pessoas dizem que não vão ver o filme X “porque me dá aflição” ou “porque é triste” ou “porque incomoda”. Como espectador/leitor/ouvinte só tenho interesse em arte que me provoca, me tira da zona de conforto e (por que não?) me ofende. Se for para me reconfortar dentro da minha visão de mundo e para mantê-la estável, faz mais sentido ver corrida de cavalo. Conte sobre suas influências. Aos 11 anos, li Um estudo em vermelho e resolvi me dedicar a me desenvolver intelectualmente nos moldes do protagonista; vivo seguindo esse exemplo até hoje. Aos 13, li o conto “A cartomante” e isso me levou a ir sozinho a uma livraria pela primeira vez. Aos 15, li Admirável mundo novo e não dormi por noites a fio. No mesmo ano, li Ulisses (que naquela época ainda era com I no Brasil, não com Y) e pus na cabeça que escritor precisa manejar a língua com perícia. Aos 16, li A paixão segundo G.H. várias vezes seguidas, tive medo de enlouquecer e aprendi que pensar tem mais a ver com profundidade que com inteligência. Aos 17, Fluxo floema. Aos 22, Em busca do tempo perdido. Depois de cursar Letras, precisei de alguém que me lembrasse que a literatura é feita por gente viva para gente viva e no presente; essa pessoa foi Haruki Murakami, sobretudo através do romance Kafka à beira mar. Aos 27, A insustentável leveza do ser. Aos 30, A amiga genial. Aos 32, em quarentena por causa da pandemia de Covid-19, li Harmada e agora quero ser gaúcho, velho e triste para escrever igualzinho ao João Gilberto Noll. As influências literárias são tantas que eu poderia fazer outra lista dessa sem repetir ninguém. De outras artes, as influências também são copiosas: Bob Dylan, Chico Buarque, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, David Lynch, Roberto Gómez Bolaños, Pier Paolo Pasolini, Edward Hopper, Johan Cruyff, Pep Guardiola... Tenho, no entanto, reparado cada vez mais em influências não artísticas: um certo vocabulário que roubei da minha avó, por exemplo. Já faz um tempo que faço questão de colocar no texto pelo menos um detalhe que venha diretamente do dia de escrita. Quando você se percebeu escritor? Aos três anos, antes de saber escrever, eu colocava uma armação sem lente dos óculos do meu avô, sentava na escrivaninha dele, rabiscava até a última folha de papel disponível e dizia que estava “escrevendo histórias”. Uma vez, os adultos da família resolveram esconder o papel para evitar desperdício, e eu escrevi nas paredes da casa inteira. Por isso, gostei do seu verbo “perceber”. Acho que sempre fui escritor, desde antes de saber escrever, mas só percebi no fim da adolescência, quando me toquei que não tinha talento para a arte que queria, de fato, seguir – música. Neste momento, aos 15/16 anos, as primeiras leituras de Clarice Lispector me apontaram o caminho. Eu cantava, tocava piano, violão, baixo, bateria, flauta, violino, gaita e ninguém se impressionava, mas era só escrever dois parágrafos que a professora de redação me dava 10 de nota do semestre inteiro. Eu compunha, mas Beethoven e Vivaldi nem olhavam para a minha cara; escrevi aos 15 anos um conto sobre um escritor que se matava sem lógica, e a Clarice me abraçou. Daniel, muito obrigada pelo seu tempo. Que Ninguém nesta família morre de amor ganhe vida por ai. Deixo esse espaço para você divulgar as suas redes, os seus trabalhos e para aqueles que querem conhecer mais sobre a sua escrita possam encontrá-lo. Eu é que agradeço pelas perguntas e pela atenção com que foram elaboradas. Quanto a me divulgar, acho muito mais sexy quando o leitor se esforça para ir atrás de um livro do que quando o escritor se oferece. Fico quieto para não estragar as fantasias dos potenciais leitores. Foto: Guilherme Beltrami Entrevista: Renata Py

  • Entrevista Gui Moreira Jr. - Livro Recíproco.

    Hoje conversamos com Gui Moreira Jr, autor do livro de poemas Recíproco, que será lançado pela Laranja Original no dia 4 de novembro. O evento será ao vivo, a partir das 19h, pelo canal do YouTube da editora (basta clicar aqui). O Gui é carioca, formado em História e apaixonado por Cinema e Música. Morou em Portugal, onde publicou dois poemas em coletâneas. Recíproco é o seu segundo livro, depois da publicação de Memórias crônicas de um coração. Gui, seus poemas trazem temas como afeto, solidão e amor de uma maneira em que fica fácil o leitor se identificar. Notamos ser um processo de autoconhecimento. Escrever para você é uma maneira de se autoconhecer? Sim, sem dúvida experimentá-los de outra forma, mas também de entender em que lugar me encaixo nessa vida. Eu estou sempre aprendendo e me reconhecendo em qualquer coisa que eu escreva. A escrita se formou para mim como uma terapia – onde posso trabalhar os meus sentimentos e reflexões e não só experimentá-los de outra forma, mas também de entender em que lugar me encaixo. O livro abre lindamente com: “o amor é também um monte de coisas que você nunca confessou ou mostrou até conhecer alguém”. Fazer poesia nos tempos de hoje é um ato de amor? É um ato de amor e também de resistência. Não necessariamente de resistir num cunho mais amplo, vejo o resistir no sentido de pessoa física mesmo, individual. Quando você emana amor para si primeiro, é que você se enxerga capaz de transbordar amor para qualquer pessoa. Como foi o processo de escrita de Recíproco? Foi muito gostoso. Eu já tinha alguns versos guardados mas a maioria surgiu depois, enquanto eu montava o livro. Foi bem natural para mim, visto que eu já tinha a ideia de escrever mais poesias e fazer um livro posteriormente ao primeiro que publiquei. Você contou que escreve desde a adolescência. Como a poesia apareceu em sua vida e quais são as suas principais influências? Às vezes acho que a poesia apareceu na minha vida de forma totalmente aleatória, só que eu já tinha uma ligação com ela através de filmes e músicas. Eu era interessado em falar de amor antes mesmo de entender os vários significados disso. Daí na adolescência, numa aula de literatura, foi que tudo se revelou aqui dentro do peito. De influências, acho que o primeiro contato aconteceu com William Shakespeare. Eu li Romeu & Julieta e algumas outras obras dele quando tinha uns 13, 14 anos. Depois veio Pablo Neruda, Vinicius, Clarice Lispector. Felizmente, hoje tem tanta gente boa escrevendo. Todos me influenciam um pouquinho, principalmente escritoras como a Ryane Leão e uma grande amiga minha que ainda vai ser muito conhecida, a Maria Gabriela Verediano – escreve textos maravilhosos. Muito fã dela. Em um dos seus poemas você diz: “O amor é um salto de responsabilidade”. É interessante a abordagem sobre a responsabilidade afetiva na sua escrita, pois o tema é importante e pouco falado na poesia. Conte para a gente sobre isso. Sim, demais. Acho que o amor não é só chegar no ponto de dizer que ama alguém. É uma construção diária e a cada encontro, e ter esse senso de responsabilidade é importante. Não é deixar de dizer as coisas ou se privar do amor, da sensação deliciosa que ele provoca, mas de entender o que ele representa naquele momento. É poder ser intensidade, mas sem o descontrole e posse que muitos confundimos com o amor. Um dos poemas de que mais gosto em Recíproco é “O amor é jazz”. Qual é a importância da música em sua vida e como ela interfere em sua escrita? Eu adoro muito esse poema. Tenho um carinho enorme por ele por causa dessa inspiração do estilo musical. Eu escuto música o tempo todo. Sempre que posso consumo sons diferentes. Música é alimento para a alma e o coração. Tenho playlists para escrever, para pensar e às vezes apenas esboçar algo na minha cabeça - que nem sempre acabo escrevendo, mas que me conforta naquela ocasião específica. Gui, cite aqui para gente um dos poemas de que você mais gosta em Recíproco e conte sobre o processo criativo dele. Ah! Gosto bastante de “Gozar é uma escolha”. Gosto quando escrevo poemas safados e ao mesmo tempo interpretativos. Eles podem ser transformados, dependendo da intenção, do sentimento, sabe? E sem contar a importância de quebrar esse tabu de falar e escrever sobre sexo. O sexo não é uma coisa suja, imoral. Ele faz parte do ser humano e tem muito amor e intimidade no ato. É sempre como você se coloca, se enxerga e se disponibiliza para essa entrega. Você morou em Portugal, lugar bem conhecido pela comida e pela poesia boa. Como foi estar na terra de um dos maiores, Fernando Pessoa? Realmente tem uma energia completamente diferente quando você está numa cidade, num país que tem vários berços poéticos para se inspirar. Lógico que aqui no Brasil não é menos por isso, pelo contrário, só é diferente quando se migra para um lugar desconhecido, com planos e ares diferentes dos que você cultivava em casa. Gui, você também nos contou que adora Cinema. Conte para gente qual é o maior filme-poesia que já assistiu. Eu sempre vou citar Casablanca, acho (risos). Eu considero o melhor e o mais romântico filme de todos os tempos, ainda que o final dele não seja como um comercial de margarina. Tem uma potência e uma legitimidade gigantesca no amor que flui por um tempo, no amor que é para sempre até não ser mais. Gui, agradeço a sua entrevista. Que Recíproco lhe traga muitas realizações e alegrias. Deixe por aqui o seu contato, suas redes sociais e links onde o leitor possa te encontrar. Imagina, eu agradeço de forma recíproca e o carinho, a atenção e a visibilidade para transbordar o meu trabalho. Eu literalmente escrevo porque é o que me sacia, me dá um estado de espírito genuíno de paz. Então, ter a sorte e vulnerabilidade de poder fazer isso e inspirar outras pessoas, nada supera essa energia. Obrigado mais uma vez! Abraços! https://www.instagram.com/guimoreirajr/ https://linkr.bio/guimoreirajr Entrevista: Renata Py

  • Entrevista Daniela Athuil - Livro Acontece no corpo.

    Daniela Athuil é carioca e vive em São Paulo. Psicanalista e poeta, já participou da antologia Haja-nos! (2017), organizada por Tiago Novaes, e faz parte do coletivo de escritores Visceralistas. Daniela lança, no dia 11 de novembro, o livro de poesias Acontece no corpo (Laranja Original). Daniela, um dos primeiros poemas do livro, "Metabolir”, nos dá uma ideia do seu processo criativo quando diz: “Levo horas, às vezes dias para me recuperar de um poema parido”. Você compreende a escrita como um processo de gestação, no qual é necessário o tempo de formação do texto? O corpo é testemunho ativo da formação do sujeito, desde cedo, antes da fala. Abriga a palavra em seus acontecimentos corporais. Criar é fazer nascer algo, um corpo, uma coreografia, um texto. - _O tempo é o tempo do corpo, que irrompe com o poema. O corpo interpela, demanda, depois vem a escrita. - Assim acontece em mim. Você faz parte do coletivo literário Visceralistas, gostaria que falasse um pouco da importância de participar de um coletivo artístico. O Coletivo surgiu do encontro de pessoas que se conheceram num curso de escrita criativa e que queriam trabalhar seus textos, publicar e compartilhar ideias a respeito da literatura. O processo coletivo foi fundamental para abrir a gaveta dos meus escritos. Timidez e medo da exposição eram questões que me perseguiam. O curso foi fundamental, e o coletivo foi o pontapé, o começo de tudo, nos desavergonhamos juntos. Escrevemos muito nos dois primeiros anos. Obsessivamente. Com a pandemia o espaço interno (e externo) de cada um mudou muito, de forma que decidimos dar uma pausa, mas a amizade e o afeto continuam muito fortes entre a gente. Ganhei amigos para a vida toda. Conte como foi o processo de escrita de Acontece no corpo. Quando conheci o Marcelo Ariel e compartilhei com ele meus poemas, ouvi: você tem um livro. A partir daí o que era uma vontade e um desejo tímido foi ganhando corpo, começou a andar, a falar e não tive mais controle do filho. Mas ele é uma mescla temporal de escritos, que falam de experiências muito variadas e marcantes que em algum momento pediram existência fora de mim. Maternidade, natureza, Psicanálise, separação, perdas, música... O poema “Fogo Lento” traz o alento que encontramos ao estarmos próximo da natureza. Aqui se tem a sorte Do pé descalço encontrar a terra Do tempo não marcar hora De agora durar infinito Você, que mora em São Paulo, sente essa necessidade da vida mais calma, de focar apenas no momento presente e do contato mais próximo com a natureza? Minha infância foi muito conectada à natureza. Meus avós moravam em Itatiaia, Serra da Mantiqueira. Eram donos de um hotel numa região que depois virou Parque Nacional. Esse hotel ainda existe e quem administra é minha mãe e meu irmão desde que meus avós faleceram. Passava todas as férias lá e cheguei a morar no hotel dos 11 aos 15 anos. Fui uma adolescente muito introspectiva, vivia no meio do mato, guiando hóspedes nas trilhas. Meu joelho vivia ralado e até hoje é cheio de cicatrizes por causa dos escorregões nas pedras das cachoeiras. Não poderia ter tido melhor experiência na infância e na adolescência nesse sentido. Ter essa abundância de mata, de água, de ar puro desde pequena. Acho que via muito mais bicho do que gente naquela época. Também é fácil notar em outros poemas essa questão da natureza. Como em “A escrita vem depois”: Guardar a palavra Esperar na calçada O verde se abrir Verbo maduro No jardim do tempo Eu gosto dele e da expressão “Esperar na calçada”. Coisas do cotidiano, como essa, inspiram a sua escrita? Fiquei tão impregnada dessa exuberância toda de Itatiaia que onde quer que esteja eu vejo natureza. Então tudo me inspira porque meu olhar é viciado, sempre busca um verdinho. Se não tem, invento na poesia. Como a poesia surgiu em você? Ela chegou em mim por alguns caminhos. A imagem mais forte que tenho do meu pai é dele sentado na mesa da sala no meio de um monte de livros. Minha casa era um caos de livros espalhados por todo lado. Muitos deles hoje enchem minha casa, ainda com aquele selinho da livraria na primeira página, com preço e tudo. Sodiler era a predileta dele. Como não ser marcada por isso? E muita música. A vitrola estava sempre tocando. E o ballet. Aprendi a falar com o corpo antes mesmo de ler e escrever. Eu era a terceira filha, e tinha uma idolatria pelos irmãos mais velhos. E por querer fazer tudo o que minha irmã fazia, minha mãe me colocou no ballet muito cedo. As coreografias, a música, aquilo era poesia, né? E depois descobri que meu pai era amigo da Adélia Prado e conhecia Guimarães Rosa, por serem diplomatas, e de quem ganhou uma dedicatória linda no livro Sagarana. No poema “Às que atravessam desertos e pântanos”, você sugere que a pessoa leia ouvindo a canção “Ela desatinou”, do Chico Buarque. Como funciona a música no seu processo criativo? A música também atravessou minha infância. Um dos programas preferidos do meu pai era ir à loja Gramophone, no terceiro andar do Shopping da Gávea. Passávamos horas lá, podia-se escutar qualquer LP sem ter que comprar. Depois meu pai compensava a longa espera me levando na Malasartes, livraria infanto-juvenil antiga também, que infelizmente vem enfrentando dificuldades com a pandemia. Meu irmão fez parte de uma banda de heavy metal. Então ouvi de tudo um pouco até formar meu próprio repertório musical. Como toda carioca não vivo sem samba, mas o Chico é meu muso musical. Por isso a música dele. Daniela, gostaria que deixasse aqui um dos seus poemas mais marcantes de Acontece no corpo. Salvar o sonho Estou dormindo Mas deixei por escrito Instruções na cabeceira Para salvar o sonho: Antes de me acordar Lembre-se, É tarefa delicada Editar fantasias Curar medos e feridas Abrir a casa Das verdades não ditas Antes de abrir as janelas E inundar a retina Saiba que toda Poesia (onírica) Foi feita para ser lida No escuro Com a luz emprestada De um vagalume Antes de me chamar Peço que confira: Meu nome Telefone As horas O dia Nem sempre é possível Acordar a mesma O corpo, a dança a natureza são uma só? Sim! Completamente. Na minha experiência sim. Recentemente escrevi um texto para o evento Raias Poéticas em que falei justamente disso. Antes mesmo de falar, a gente canta, dança, imita bicho (muuu, miau), não é? Por isso falamos com o bebê, em respeito ao sujeito que ali está, para justamente fazer a aliança entre corpo e linguagem. Nasce um corpo, nasce uma coreografia, um texto, uma pequena floresta. Daniela, muito obrigada pela entrevista, achei Acontece no corpo um livro muito sensível e bonito. Deixe para gente links, dicas, planos para acompanharmos o seu trabalho. O blog dos Visceralistas: visceralistas.wordpress.com Meu instagram: @dani.athuil Planos: um livro de memórias/cartas com meu pai, mas só depois que meu corpo se recuperar desse. Obrigada! Para conhecer o livro da Daniela, basta acessar: Acontece no corpo | laranja-original (laranjaoriginal.com.br) Entrevista: Renata Py

  • Entrevista Hugo Almeida - Livro Certos Casais

    Conversamos hoje com o escritor Hugo Almeida (1952), autor de Certos casais (Laranja Original), seu quarto volume de contos, que reúne nove textos, divididos em dois livros. O lançamento será no dia 27 de setembro, segunda-feira, a partir das 19h30, no canal do YouTube da editora Laranja Original. Hugo Almeida é mineiro, mora em São Paulo desde 1984 e tem mais de dez livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Prêmio Nestlé 1988) e os infantojuvenis Viagem à Lua de canoa [incluído no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) de 2011], Todo mundo é diferente, Porto Seguro, outra história e Meu nome é Fogo. Doutor em Literatura Brasileira pela USP, organizou Osman Lins: o sopro na argila (2004), ensaios, e as coletâneas de contos Nove, novena: variações (2016) e Feliz aniversário, Clarice (2020). Hugo, suas narrativas têm um ritmo rápido, como pensamentos desta época acelerada em que vivemos. As personagens transitam com uma liberdade ligeira e nos prendem do começo ao fim. Já se nota isso em “O sono do vulcão”, conto que abre o livro. Como você trabalha o ritmo na sua escrita? Existe um critério? H.A.: Obrigado pelo que disse e pela pergunta. O critério é o que texto agrade ao ouvido, tenha consistência e convença. E que prenda o leitor (que bom você ter sentido isso na leitura do livro). O ritmo do bom texto em prosa está próximo do da poesia. Ritmo é essencial, ao lado da harmonia, da sonoridade, da verossimilhança, ainda que a situação narrada possa parecer absurda, irreal. E precisa haver uma relação íntima entre o narrado e o modo de narrar. Cada conto exige um texto diferente, específico: diálogo, descrição, fluxo de consciência, vozes cruzadas e às vezes a combinação disso tudo. Além do ritmo, é fácil notar que o tamanho da fonte do texto dá sinais ao leitor, com letras menores em alguns pequenos trechos, por exemplo. Como é a sua relação com essa etapa visual na escrita? H.A.: Quando as personagens falam baixo, sussurram uma frase insinuante para alguém, optei por usar uma letra bem menor no texto, um casamento da forma com o conteúdo. Gosto disso. Imagino que funcione na história, o leitor percebe que aquela frase ou palavra não poderia ser dita em voz alta. Ao mesmo tempo, não gosto de palavras em maiúsculas ou negrito, isso faz o leitor ler o destaque antes da hora. E prefiro o texto conotativo, que sugere, ao denotativo, que explicita. Uma expressão de que gostei bastante é aquela com que você descreve a personagem Tâmara: “parece uma fruta que não existe, eu dizia, e ficava vermelho”. Sua escrita tem métrica e poesia musical. Cada fala diz bastante sobre as personagens. Como é a sua relação com a música? H.A.: O leitor tem liberdade na leitura e interpretação, claro, e sua pergunta é interessante, mas a analogia no conto não é com a Tâmara, a personagem: é com o seio da moça. Observe que antes da frase que você citou, o narrador diz: “Aos 22 (dela), nos casamos. Vinte e dois. A empinada altivez dos vinte e dois. Arfar de coração e blusa”. E aqui surge, entre parêntesis, a frase “parece uma fruta que não existe...”. Sua percepção de que existem métrica e poesia musical nos textos e da relação delas com as personagens me alegra imensamente. A música está na vida do escritor, do artista, de toda pessoa que tem sensibilidade para captar e sentir o belo, o sublime e a dor da existência humana, esse divino mistério de viver. Toulouse-Lautrec, Drummond, Mozart, Rodin, Klimt, Van Gogh. Várias referências artísticas de peso aparecem em sua escrita e elas nos ajudam a descrever as cenas. Como se dá a influência desses grandes artistas na sua vida? H.A.: É isso mesmo que você disse. Os quadros, as músicas, a escultura e os versos ajudam a compor as cenas, o espaço, a ambientação, a descrever personagens ou revelar seu estado de espírito. O brilhante contista Francisco de Morais Mendes, autor do arguto (e generoso) texto da contracapa de Certos casais, leu o livro com o computador ligado: cada pintura citada ele procurava no Google, o que enriqueceu a leitura, me disse. A ópera “Don Giovanni” (o libertino punido), de Mozart, dá o clima de certos momentos de “O sono do vulcão”. No mesmo conto, a citação de Rodin aparece na descrição do pé de uma mulher (“Calcanhar, tornozelo, tudo perfeito, quente, Rodin vivo”) que um homem tocava num voo noturno. Na minha vida, como nos meus livros, grandes artistas são sempre muito bem-vindos, têm espaço infinito. Eles me ajudam, como a todos nós, a ver e sentir melhor o mundo, as pessoas, a bonita e às vezes angustiante complexidade da vida. Minha mulher e eu temos uma biblioteca razoável de grandes pintores e, sempre que podemos, visitamos bons museus. Drummond é presença constante nos meus textos desde o primeiro livro, Globo da morte, de 1975. Ler Drummond é conhecer o vasto mundo, ainda que não seja solução. O conjunto dos contos tem ares de romance, mas nos permite ler cada conto com grande autonomia. Essa peculiaridade surgiu naturalmente em Certos casais ou foi estabelecida desde o início do projeto? H.A.: Parte desse livro é bem antiga, de 1991, como o conto “Outra vida para dona Olímpia”. A partir dele escrevi outros contos do Livro I, com personagens citadas ali, três gerações de uma mesma família. A ideia era esta: uma ligação entre as histórias, sem haver dependência, cada uma pode ser lida separadamente, são os “certos casais”. O conjunto faz mais sentido. A escritora e artista Beatriz Magalhães escreveu na orelha (um primor, um brinco) de Certos casais que no conto “Amor radioativo”, do Livro II, está o “casal certo”, Marie e Pierre Curie. Não posso deixar de registrar que devo a W. J. Solha, grande escritor e amigo, a divisão de Certos casais em dois livros. Sou muito grato a ele. Na versão inicial não havia essa separação, que é tão evidente... O título me agrada porque não é o de nenhum dos contos e abarca todos do livro, a exemplo de Sagarana, de Guimarães Rosa, e Nove, novena, de Osman Lins. Não estou comparando, pelamordeDeus. Apenas estou satisfeito por ter conseguido um título abrangente. Assim, nessa prosa corriqueira, de conto em conto, vem a unidade de acompanhar a trajetória de vida das personagens. Como Tâmara, que a vemos em várias situações e momentos, descritos ou lembrados por ela mesma ou por outra personagem. Passa-se a vida de um trecho para o outro. Gosto de como trabalha a passagem do tempo e gostaria que falasse sobre isso. H.A.: Obrigado. Tentei mostrar as diferentes visões das personagens, como cada uma percebia as outras, cada uma na sua solidão, ao longo do tempo, algumas desde a infância até a idade adulta e outras até a velhice ou a morte. Alguns episódios parecem ser uma coisa, e não são, mas poderiam ser. Aquela velha história do engano das aparências. A decisão final é do leitor. Quanto ao tempo nesses contos, na maior parte é o cronológico, principalmente no último, do casal Curie. Há também o psicológico, o histórico e o cíclico, o eterno retorno. Gostaria de lembrar que, ao lado das questões do cotidiano, da vida prosaica, digamos mundana, profana, há ainda o aspecto religioso em vários contos, não somente em “Outra vida para dona Olímpia”, que se passa na Semana Santa em Diamantina. Até os dez mandamentos estruturam e regem um dos contos. E no primeiro, “O sono do vulcão”, lateja um veio bíblico. O verbo não se fez carne? Por baixo de cada história narrada, há outra oculta para o leitor descobrir. As frases curtas e a pontuação também nos dão a sensação dos segundos voando, do tempo escorregando pelas mãos. Sente a vida assim? H.A.: Penso ser essencial distinguir o narrador do autor. Em alguns momentos, eles podem até se confundir, mas não sempre. Se um narrador-personagem diz, por exemplo, que “Deus fez o mundo à toa”, não quer dizer que eu concorde com ele. A ânsia de aproveitar cada segundo tem muito a ver com a chamada vida moderna, o que se reflete nas personagens e nas histórias. E isso deve ser expresso no texto, na linguagem, na pontuação. Mas minha relação com o tempo, sobretudo quanto à literatura, é mais tranquila. Basta ver que parte desse livro tem três décadas e outras, duas. Não tenho pressa. Nada ali é recente, mas é claro que mexi nos textos pouco antes de publicá-los. As frases definem bem a personalidade das personagens. Um exemplo está no conto “A brisa na varanda”, com a passagem: “Quem seguir a trilha de um homem encontra coisa”. Ótima maneira de começar a contar uma história. Conte para o leitor: o que ele vai encontrar em Certos casais? H.A.: Espero que ele encontre o que deve haver em boa literatura: um texto bem escrito e algo original, com histórias de gente vivendo momentos de aflição, mas também de ternura e busca de encontro: a solidão sempre foi marca do gênero conto. Procuro iniciar um texto com uma frase curta, incisiva, que desperte o interesse do leitor pela história. Cortázar dizia que é preciso fisgar o leitor desde o título e a frase inicial. Quase todos os títulos dos contos desse livro são metafóricos, como o que você citou. Não há brisa nem varanda nele. Ao contrário, só tormento. Uma briga de casal, por exemplo, tem o título de “O pão nosso de cada dia, vosso reino (intervalo para falar de flores)”. Hugo, gostaria muito de que falasse da sua trajetória literária. Tão rica e cheia de momentos interessantes. Deixe também um link para o leitor pode conhecer mais o seu trabalho. Gostaria, em especial (por ser fã), que nos contasse sobre o trabalho Osman Lins: o sopro na argila. H.A.: Vou tentar ser sucinto. Na juventude, participei da revista literária Silêncio, nos anos 1970, em Belo Horizonte, com um grupo novos autores e estudantes da UFMG (eu cursava Comunicação; sou jornalista), entre eles o escritor Luiz Fernando Emediato, hoje editor da Geração Editorial, amigo há quase 50 anos. A revista foi censurada pela ditadura militar. Nela, publiquei meus primeiros contos. A estreia em livro se deu em 1975 com Globo da morte, que teve boa acolhida de autores consagrados, como Osman Lins, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Fonseca. Sempre trabalhei como jornalista, enquanto escrevia ficção para adultos e jovens. Já morando em São Paulo, ganhei o Prêmio Nestlé em 1988 com o romance Mil corações solitários, que teve três edições pela Scipione. Em 2005, defendi tese de doutorado na USP sobre o A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins. Um ano antes, organizei e prefaciei o livro de ensaios Osman Lins: o sopro na argila, reunindo 18 estudiosos do autor de Lisbela e o prisioneiro, entre eles Iná Camargo Costa, José Paulo Paes, Modesto Carone e Sandra Nitrini. Esse livro despertou em muita gente o interesse pela obra de Osman Lins e tem sido citado em dissertações e teses sobre o autor. A professora e poeta Elizabeth Hazin, que coordena um grupo de estudos da obra de Osman Lins, me contou que O sopro na argila deu origem a uma nova geração de osmanianos. Ela sugeria a leitura daqueles ensaios a seus alunos na Universidade de Brasília. Além desse livro, organizei, juntamente com Rosângela Felício dos Santos, Quero falar de sonhos, de artigos de Osman Lins anteriores a Avalovara. Na ficção, organizei as coletâneas de contos Nove, novena: variações, em 2016, e Feliz aniversário, Clarice, em 2020. No início de abril de 2020, publiquei o artigo “Contos dos anos 2000 já merecem uma antologia” na revista digital São Paulo Review, que teve boa repercussão. Depois da tese, esse é o meu mergulho literário de maior fôlego. Ali, o leitor pode conhecer mais de 160 contistas e um pouco do que tenho feito em literatura, sempre de maneira discreta, quero distância de holofotes. Não tenho blog ou site nem estou em redes sociais. Na nota sobre mim, no fim do artigo sobre o conto deste século, está citado o então inédito Certos casais, que a Laranja Original publica agora (sou grato ao escritor e amigo Ronaldo Cagiano, que me estimulou a enviar os originais à editora; agradeço também ao editor Filipe Moreau e equipe, que acolheram tão bem o livro) e há o link da palestra que fiz na ABL em 2018, “Osman Lins, 40 anos depois, mais atual”, que já tem quase 6 mil visualizações no Youtube, número expressivo para vídeos sobre literatura. O que me espanta, mas também alegra por ajudar a divulgar a obra de Osman Lins. Hugo, muito obrigada pelo seu tempo. Que Certos casais ganhe vida por aí. Gostaria de finalizar a entrevista com você nos contando sobre futuros projetos ou mesmo algum conselho para a galera jovem que tem interesse em seguir o caminho literário. H.A.: Disponha, Renata. Eu que agradeço pela leitura de meus contos e torcida por Certos casais e pelas ótimas perguntas. Amo o que faço, escrever ficção. E falar sobre literatura e Osman Lins é uma alegria permanente. Meu projeto é continuar a escrever e publicar. Aos novos escritores e a candidatos à carreira literária, minha sugestão é a mesma de todo autor experiente: ler bastante e não ter pressa em publicar. Alguns dos autores brasileiros indispensáveis: Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Osman Lins, Clarice Lispector, Rubem Braga, Dalton Trevisan, Drummond, Bandeira, João Cabral de Melo Neto. Um livro essencial para quem quer ser escritor é Guerra sem testemunhas, de Osman Lins, infelizmente encontrável hoje apenas em boas bibliotecas e em sebos. Esse livro tem feito uma enorme falta às novas gerações. Precisa ser reeditado. Foto autor: Bárbara Braga Projeto gráfico: Marcelo Girard Foto da capa: Beatriz Magalhães Entrevista: Renata Py

  • Entrevista Alexandre Pilati - Livro Tangente do cobre

    Alexandre Pilati, poeta e professor de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília (UnB), lançará no próximo dia 29 de junho o seu novo livro de poemas, Tangente do cobre (Editora Laranja Original). Esse é o quinto livro do escritor − ou seja, já fomos presenteados com sua poesia anteriormente. Agora, com Tangente do cobre, Alexandre amplia os limites da sua voz poética trabalhando a ligação entre personagens como Karl Marx, Amy Winehouse, Safo e Ramona, e questões da existência humana em um diálogo entre o clássico e o contemporâneo. Alexandre, conte da ideia sobre esse diálogo entre as questões da vida e os personagens que encontramos em Tangente do cobre. Tangente do cobre reúne poemas escritos a partir de 2018, ano em que publiquei o livro Autofonia. A principal busca que empreendi nesses poemas foi a de deslocar a atenção da voz lírica individual e dar lugar à narratividade ou à ficcionalização. Isso porque, depois de ter publicado Autofonia, percebi que minha poesia estava muito centrada numa perspectiva subjetivista da lírica, o que resultava, na maioria dos casos, na expressão de um mundo mais interpretado intimamente do que revelado materialmente. A tentativa de revelar o mundo, de deixá-lo falar, típica da ficção, foi a base para eu começar a produzir poemas em que personagens (históricos, anônimos, reais ou ficcionais) foram se fazendo progressivamente mais presentes. O tempo em que vivemos está totalmente conectado a experiências, até históricas, do passado. Como essas experiências e os personagens históricos de todos os tempos influenciam a sua obra? O ponto da História em que a vida de cada um de nós ocorre não está isolado ou desconectado dos eventos que constituíram a condição que chamamos de presente, a única, afinal, à qual temos acesso plenamente. Na literatura, esse fato estruturante de nossa relação com o tempo e as contingências se dá como uma condição de existência do texto. Uma voz lírica que fala hoje, por exemplo, se constitui evidentemente como o resultado de um processo de acumulação. Se eu posso escrever hoje, faço isso com ferramentas que não foram criadas por mim. Desse modo, a poesia é um tecido muitas vezes inconsútil, onde se amarram falas dos que nos antecederam e que integram o nosso presente, embora não vivam mais conosco. Assim, as referências a personagens do passado, históricos ou não, em Tangente do cobre têm um pouco a função de explicitar a constituição desse tecido. Meus poemas tentam evidenciar que nenhuma voz é única: toda voz é um coro histórico. O poema “Conto de fadas” é bem interessante, tendo Karl Marx como personagem central e tratando de seu encontro com Jenny. Conte sobre eles para a gente? Marx junto com Dante e Machado de Assis são minhas leituras de sempre. Estou constantemente lendo e relendo textos deles e sobre eles. No caso de Marx, quando escrevi o poema, estava às voltas com leituras de seus textos de juventude e também com algumas biografias. A aproximação de Marx e Jenny é sempre contada pelos biógrafos num enquadramento muito romântico, que é determinado, talvez, pelos versos que o filósofo dedica à amada. E ressalte-se: quando digo “versos” não é apenas um poema, nem dois ou três, mas muitos cadernos de poemas, o que, aos olhos de hoje, gera uma certa graça de despropósito na coisa toda. A mim me parecia, então, que nesse ponto as biografias tinham certo ar de “conto de fadas”, pelos detalhes curiosos que registram, e esse foi o título que escolhi para o poema. Depois fui recolhendo pedaços de referências de textos de Marx e de seus biógrafos e fui colando e costurando com algumas palavras minhas. Mas este é, praticamente, um poema-colagem ou montagem. Achei que seria interessante colocar em evidência a ligação entre o amor e a luta política, que se combinam, nos dois personagens, na simbologia dos versos e do coração. O resultado é divertido; eu, ao menos, me diverti escrevendo. Gosto de que Marx seja ali chamado de “meu javali selvagem”. É fácil notar a presença da música em seu trabalho. Quais são suas maiores influências e inspirações? Eu ouço muita música, praticamente todos os dias. Além disso, gosto de dizer que faço parte de uma geração de poetas ou escritores que chegou à poesia ou à literatura por causa da canção. Por ter me formado culturalmente ouvindo muito a canção brasileira, cuja exigência estética, mesmo no que é mais trivial é altíssima seja em termos de letra, seja em termos de música, o mundo da literatura, especialmente o da poesia, abriu-se para mim muito naturalmente, quase como uma necessidade natural que foi despertada em mim pela canção. Em Tangente do cobre, há referência a Cartola, Amy Winehouse, Chico Buarque, Strauss e outras, que talvez tenham passado de modo mais ou menos inconsciente. A música é certamente um grande ponto de partida para minha escrita. Sinto que ela é um gatilho da criatividade quando as ideias estão meio travadas, sem encontrar forma que as dê expressão. Bonito notar as questões existenciais, psicológicas e sobre relacionamentos que existem no livro, mescladas com referências artísticas e literárias, como no poema “Pegada (Crusoé)”. Como se dá essa mistura boa? Essas questões existenciais aparecem porque a tentativa foi a de “animar” personagens históricos com alguns traços definidores do que se pode chamar de um caráter. Dar consistência verossímil e universal a um caráter é um pouco a função da literatura, é o que torna aquela figura algo típico, e não apenas um dado individual. E, no caso do meu livro, a construção desses caracteres se dá sobretudo com a projeção dos meus próprios sentimentos e da minha própria percepção de mundo, o que acaba resultando em tentar trazer esses personagens para a cena contemporânea. Bem, esta é a tentativa. Talvez nem sempre ela seja bem-sucedida, mas trata-se de um trabalho de transfiguração literária de personagens, históricos, literários e anônimos, que são submetidos às condicionantes da linguagem e da minha própria experiência pessoal. Você me contou uma história que achei bem bacana que inspirou uma personagem do seu livro, a Ramona. Conta ela pra gente? Ramona é uma personagem dessas típicas do Brasil, que exprimem nossa vida cotidiana e o que há além dela; que despertam em nós o nosso melhor amor e nosso pior ódio. Escrevi esse poema numa viagem que fiz a São Paulo, cidade que adoro, e me hospedei no Centro, que é belo, bruto e cheio contradições explícitas e de personagens interessantes. No dia em que peguei um carro para ir ao aeroporto tomar o avião de volta a Brasília, ao dobrar uma esquina da República, vi uma transexual negra belíssima, alta, forte, dando uma risada maravilhosa, cheia de vida, intensa. Ela usava um turbante branco e rosa e estava exatamente embaixo de um letreiro de estabelecimento comercial que estampava em letras grandes “Ramona”. A beleza trivial da cena era tamanha que parecia que todo o resto (ruas, transeuntes, interlocutores, carros) havia desaparecido. Naquele instante só existia a meus olhos “Ramona”, o nome, a pessoa linda. Entendi, então, que era obrigatório fazer um poema, inventar uma história para “Ramona”. E foi assim que ela se tornou “A rainha da República”. Quando desembarquei em Brasília, o poema estava pronto. Estou bem curiosa para saber também sobre a inspiração da Amy Winehouse. Eu dedico a Amy Winehouse o poema “Você volta pra ela”, em que faço referência às pessoas que, tal como ela, são “atravessadas pelo dom” e produzem uma beleza capaz de instigar em nós a criação de outros vínculos com a humanidade, mais livres, mais intensos, mais vivos. Isso tudo eu reconheço na música da Amy, de quem eu sou realmente fã, não há outra palavra. Quando ela morreu, quis fazer um poema para ela, falando um pouco de como a indústria da música produz e massacra talentos como ela. O seu caso é, nesses termos, um paradigma do que efetiva o mundo capitalista. Nunca consegui fazer o poema, que ficou como uma dívida dentro de mim. Certa vez, estava caminhando numa rua de Roma e, numa das vitrines daquelas lojas muito badaladas, estava um quadro com uma pintura imensa do rosto de Amy Winehouse. Aquela beleza viva destoava de tudo quanto a rodeava. As mercadorias mortas entravam em contraste com a potência de vida daquela voz que não havia desaparecido, apenas se calado. Então fiz o poema que dá figura ao gesto subjetivo de eu voltar a Amy e a sua voz, no qual eu declarei: “é bom saber que existe gente em forma de vulcão”. Com esse poema eu abro uma seção do livro chamada “Damaria”, que é o coletivo de damas. Nessa seção os poemas são todos dedicados a perfis femininos. É forte a presença de questões sobre política, dinheiro, humanidade e solidão. A poesia, no seu caso, nos faz olhar de frente para o mundo que vivemos e seus dilemas éticos. Colocar isso em forma de poema para você é uma catarse das dificuldades da existência? Escrever e ler literatura, para mim, é uma forma de conexão com o mundo e com suas contradições. Toda literatura fala apenas de um assunto: as relações humanas. É com essa dimensão que nos vinculamos quando lemos ou escrevemos literatura. Isto é, se for de verdade. Como dizia Drummond: escrever é uma atividade de grande responsabilidade. E, se ao processo de escrita e de leitura está vinculado o princípio da catarse − creio que vale sublinhar que aqui catarse não significa, em hipótese alguma, evasão do mundo, mas criação de novos vínculos com ele −, a catarse indica que, através da arte, nos recolocamos no mundo com mais lucidez acerca do nosso lugar social. Um poema que eu acho que indica bem esse princípio, que é ordenador da minha literatura, é “Instância”, o primeiro poema do livro, no qual eu digo que “narrar” é “uma forma de transformar” e de “transformar-se”. Se a mercadoria distrai e aliena, a arte integra e vincula. Alexandre, escolha uma das poesias para darmos um spoiler aos leitores. Pode ser? Vamos ver se eu sou bom de spoiler (risos)... Acho que uma coisa curiosa desse livro é o seu arranjo geral. Dividi os poemas em três partes: “Conjuntura”, “Você volta pra ela” e “Bate outra vez”. Cada uma delas tem peculiaridades muito próprias e, claro, há uma unidade entre os poemas que é a percepção crítica da realidade através da arte e das figuras humanas que eu reconstituo em alguns dos textos. Mas gosto muito de dois experimentos, que agrupei sob o título de “Duas fábulas”. São dois poemas em que os animais são protagonistas. É possível enxergar nos olhos e nas atitudes desses animais gestos e sensações muito familiares. A provocação que eu faria aos leitores seria a de tentar adivinhar quem são os animais que atuam como personagens dessas duas pequenas fábulas em forma de poema... Alexandre, obrigada pela sua atenção. Como foi bom ler o seu livro. Deixo um espaço para você falar o que quiser aos leitores: sua obra, planos, conselhos, música ou poesia. Eu é que agradeço. Sempre é bom poder conversar um pouco sobre as coisas que a gente escreve, especialmente quando se trata de uma leitora sensível como você é. Não há desejo maior neste momento que nós vivemos que o de que possamos reorganizar as forças sociais capazes de propor um genuíno futuro para o nosso país. Superar a pandemia e a lógica terrível que comandou a sua condução é a esperança do momento. Falo um pouco sobre a pandemia, aliás, no poema “O sonho de uma coisa”, que é também uma homenagem a Marx e a Pasolini. No final desse poema sonho com a possibilidade de que em breve “sairemos pela tarde/ austera e crua/ e esperaremos/ que não seja tarde demais/ para as flores, a lágrima/ o desenho à mão livre/ o amanhecer”. Sonhar com isso já é um começo, que está disponível na poesia, na música, na literatura e na arte. Isso é bom, alenta e faz a gente lutar. Editora Laranja Original Editores Filipe Moreau e Germana Zanettini Projeto gráfico Marcelo Girard Produção executiva Bruna Lima Diagramação IMG3 Foto autor Arquivo pessoal Entrevista Renata Py

  • Traduções de Augusto de Campos voltam em reedição - Matéria do Jornal Rascunho

    “Invenção" será lançado no dia 28, em bate-papo online que reúne os editores Filipe Moreau, Simone Homem de Mello, Vanderley Mendonça e Flávio Vignoli. Lançado em 2003, Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti, com traduções de Augusto de Campos, retorna em nova edição, publicada pela Laranja Original. Para marcar a reedição do livro, os editores Filipe Moreau, Simone Homem de Mello, Vanderley Mendonça e Flávio Vignoli participam de um bate-papo no dia 28 de abril, às 19h, transmitido pela página do Facebook da Casa Guilherme de Almeida. A obra aborda os poemas inventivos dos trovadores Arnaut Daniel e Raimbaut d’Aurenga, e os cantos e canções de Dante Alighieri e Guido Cavalcanti, apresentados por Augusto de Campos. Dividido em duas partes, o livro traz textos que introduzem o leitor no universo translinguístico que o autor propõe, colocando lado a lado o texto original e a tradução correspondente, além da breve biografia de seus criadores. Para ler a matéria na íntegra, basta clicar: Traduções de Augusto de Campos voltam em reedição – Rascunho RASCUNHO O Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

  • Entrevista Jaqueline Camargo - Livro Poemarcante

    Jaqueline Camargo, paulistana, criou em 2015 a página Poemarcante nas redes sociais. Leva, desde então, poesia a milhares de leitores. Hoje, alguns dos poemas encontram-se no livro Poemarcante, que será lançado no próximo dia 10 (de abril) pela Editora Laranja Original. Futura psicóloga, Jaqueline coloca muito de seu eu, de suas questões existenciais e amores em suas palavras, oferecendo essa troca de experiência com os seus leitores. Jaqueline, você me contou que, desde pequena, tem o costume de escrever bilhetes, cartas e notas. Você ainda tem de recordação alguns desses escritos? Tem algum em especial que você guarda na memória? Infelizmente perdi alguns dos meus escritos da infância, mas ainda tenho cartas que trocava com as amigas da escola e também um diário em que costumava descrever todo o meu cotidiano com detalhes. Sempre tive um olhar atento ao dia a dia. Em um dos meus diários, colava até papel de bala que ganhava e escrevia ao lado: “ganhei da minha amiga”, junto à data. A sua escolha pela Psicologia está ligada ao universo que lemos em sua poesia? Acredito que minha escolha pela Psicologia tenha sido motivada por uma identificação da minha personalidade muito presente em meus poemas, me considero muito sensível e empática, considerando toda a experiência e a subjetividade humana. Como é a sua experiência com as redes sociais? Conte as coisas bacanas que as redes nos oferecem e as trocas também. Como surgiu o nome Poemarcante? Minha experiência com as redes sociais até então é muito positiva, me sinto próxima das pessoas e é muito gratificante receber o carinho e o feedback de quem acompanha meu trabalho. Vejo que as redes sociais, se bem utilizadas, podem nos abrir portas e nos ajudar a criar laços reais e significativos se estivermos dispostos a cultivar relacionamentos para além do virtual. O nome Poemarcante surgiu ao voltar da escola, no ônibus, pensando em elementos que fossem significativos para mim. Daí a junção de poema, mar e marcante, compondo o nome da página. Em tempos de pandemia, a escrita te alivia? Nesses tempos de pandemia, em que estamos ainda mais próximos de nós mesmos, escrever é para mim reorganizar os afetos e alinhar meus sentimentos e pensamentos, ressignificando minhas angústias. No poema (L)ar, há um trecho de que gosto muito: “Moro em uma casa no topo da árvore/uma casinha de madeira envelhecida”. Conte pra gente sobre ele. O poema (L)ar é muito significativo para mim. Eu tive um insight ao ficar embaixo de uma árvore, durante o intervalo de um curso, sobre um pensamento de reunir elementos como ar e lar - e como respiramos. A casa na árvore entra como espaço de abrigo e acolhimento. O outro representado por ela, a quem o eu lírico se declara, pode em algum momento não ter estruturas para o abrigar mais, mas simbolicamente esse outro passa a se fundir com o próprio eu lírico. Em "não mais viverei na casa, mas a casa viverá em mim" pode-se perceber que há uma internalização do outro. O outro vai mas continua sendo parte da gente. A casa na árvore traz um sonho infantil, podendo ser associada à necessidade de segurança e lazer que toda criança interior busca. No livro você tem algum poema preferido? Se sim, conte sobre ele. Um dos meus poemas preferidos é o “Em síntese”, em que brinco com as palavras explorando-as em seus múltiplos sentidos. Os versos “a vida que eu vivo/ os passos que eu dou/ não sou eu quem vivo/ sou eu quem sou” são muito representativos, pois demonstram o quanto da minha identidade se constitui na minha obra, daí os poemas e o livro surgem como um feito significativo e confessional. Já pensou em musicar os seus poemas? Já ouvi que poderia ser compositora, porém nunca pensei em musicar os meus poemas, acredito que muitos deles podem assumir diversas sonoridades a depender de quem faz a leitura. Jaque, fale um pouquinho das suas inspirações. O que move você a escrever? Minhas inspirações estão no cotidiano, na minha maneira de experienciar o mundo e na sensibilidade de percebê-lo de modo muito singular, fazendo associações de ideias que fluem naturalmente. A literatura também me inspira, poetas grandiosos como Fernando Pessoa, Hilda Hilst, Clarice Lispector e Mario Quintana são grandes inspirações, além de grandes poetas contemporâneos como Bráulio Bessa, Ryane Leão, Rupi Kaur, entre outros. Música ou silêncio na hora da escrita? Prefiro o silêncio para ouvir a voz dos meus pensamentos, mas em dados momentos já escrevi em ambientes bem movimentados, mergulhando em meu universo particular. Jaque, muito obrigada pela sua atenção. Para encerrar a nossa entrevista, quero saber como é a sensação de estar com o livro Poemarcante em mãos, recém-nascido. E também peço a você que deixe algum recado para aquele leitor que acompanha a sua página e escreve poemas ou textos com o sonho de publicar. Gostaria de deixar a quem me lê e a quem escreve que continue escrevendo se a escrita também trouxer sentido à sua existência. Quando o que não cabe na gente transborda, assumindo diferentes gêneros textuais, podemos amenizar o peso da existência e dar a quem nos lê a possibilidade de saber que não estão sozinhos e ser acolhidos pela identificação. Tudo o que fizerem façam com o coração e com amor, acreditem tanto no seu sonho a ponto de o mundo acreditar também. Poemarcante é a prova de que um sonho pode se tornar realidade. Além de um livro, ele é uma parte importante de mim eternizada em instantes, estantes e corações. A sensação de publicar o primeiro livro, essa sim, vai além das palavras, é única e indescritível. Para conhecer ou adquirir o livro Poemarcante, basta clicar: Poemarcante | laranja-original Entrevista: Renata Py

  • Entrevista Osvaldo Fagnani - CD Máquina Só

    Hoje converso com Osvaldo Luiz Fagnani, músico que fez parte da Vanguarda Paulista nos tempos do Lira Paulistana. Além de compositor, ele é dono da conhecida voz da canção “São Paulo, São Paulo” e ex-integrante da banda Premeditando o Breque. Osvaldo também trabalhou com muitos músicos e bandas. Com o Premê, já foi produzido por Lulu Santos no disco O melhor dos iguais, que teve a participação de Caetano Veloso. Já tocou com Raul Seixas, Rita Lee, entre outros. Nesse momento globalmente introspectivo, por conta da pandemia de covid-19, ele lança o álbum inédito Máquina Só. São 16 faixas de um trabalho individual — Osvaldo fez a produção, a gravação e tocou todos os instrumentos do disco — que mescla blues, rock e MPB e mostra experiência e diversidade. Osvaldo, você me contou que Máquina Só veio de um trabalho dos anos 1980. Ainda assim, ele se encaixa perfeitamente nos dias de hoje, é um álbum quase profético. Como se deu isso? Depois que eu saí do Premeditando o Breque, ainda na década de 1980, continuei a fazer várias músicas. As escolhidas entraram nesse disco; as temáticas, às vezes melancólicas, às vezes apocalípticas, não se enquadravam muito na moda dos últimos anos. Penso que agora, infelizmente, elas estão mais ambientadas nesses tempos de introspecção. A primeira canção, “Máquina só”, que dá nome do disco, fala de uma realidade que foi nos engolindo a cada dia, a ponto de dependermos de uma pequena máquina que cabe no bolso, o celular. Inclusive, podemos fazer um filme ou até mesmo gravar um CD com ela. O que você pensa a respeito? “Máquina só” é um conceito abrangente que vai desde a Internet, a inteligência artificial, a desvalorização do processo artístico, a robotização e até a máquina social, por assim dizer. Conta pra gente o lado divertido disso. Como foi encarar um estúdio sozinho e preparar todo esse material bacana? Foi uma realização tocar todos os instrumentos e compor as músicas e os arranjos. É muito diferente do normal, em que o artista acaba tendo pouco domínio sobre o resultado final, por ter o auxílio de muitos outros talentos. A terceira canção, “Amargo Armagedon”, traz à tona assuntos inquietantes como Amazônia, o descuido com a arte, o fetiche pelas armas. Vivemos uma espécie de luta entre o Bem e o Mal, tal qual o significado da palavra Armagedom. A música é uma forma de exorcizar tudo isso? É um rock meio grunge nesses tempos de antagonismos, de pragas bíblicas e de incêndios estratosféricos. Fiz a letra dessa música com o poeta Carlos Castelo, e é a primeira música do Premê com o Língua de Trapo. O seu álbum tem bastante influência do blues. Conta pra gente, por favor, sobre isso e também a influência do blues na música brasileira. O blues já está na MPB faz tempo. Como o jazz está na bossa nova, no rock da Jovem Guarda, no Tropicalismo e muito mais. Mas eu desenvolvi especialmente um estilo honky-tonk ao piano. Uma das músicas, “Leia antes de usar”, é uma parceria com a jovem poeta Germana Zanettini. Ficou um trabalho bem bacana! Como foi a parceria entre vocês? Você acha mais desafiador musicar um poema ou letra ou o contrário? O poema da Germana tem muita métrica e rima, portanto, fica fácil de musicar. Além do quê, o tema é interessante para uma canção alternativa. Outros poetas que participaram do disco foram João Paulo Oliveira , em “Tempo blues”; Serginho Franco, da banda Saco de Gatos, na faixa “Música e letras”; e Carlos Coelho, na canção “Dois”. Você está lançando esse trabalho pela Laranja Original, editora conhecida por seus livros de arte, literatura e poesia. Como se deu essa união? Foi um contato que eu fiz com o multiartista Filipe Moreau (escritor, pintor, arquiteto e músico). Nós já nos conhecíamos do tempo da Vanguarda Paulista, da qual ele também fez parte. Recentemente fizemos uma parceria na revista de literatura e arte da Laranja Original. Ele ilustrou um poema meu, “O som do Om”. Osvaldo, como era a efervescência musical da década de 1980 em São Paulo? Conte sobre a frase “Gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo”, da canção “São Paulo, São Paulo”. O punk só chegou aqui por volta de 1983, então era a novidade no nosso jeito yankee. Mas, olhando em retrospectiva, a década de 1980 começou com muitas promessas que logo se esvaneceram. Osvaldo, muito obrigada por sua entrevista. Deixo aqui um espaço livre para você falar o que quiser sobre Máquina só, sobre o mundo musical, dicas para jovens músicos, shows e projetos. Espero que vocês tenham um tempinho para as 16 faixas, elas são bem sintéticas, e, eu diria, hits de um universo paralelo! Para os jovens músicos, tenho uma dica diferente em relação à música popular e à instrumental. Considero ser mais importante a inspiração do que a transpiração. Superobrigado a todos pela oportunidade. Entrevista: Renata Py - Fotos: Marco Prass Para conhecer ou adquirir 'Máquina Só', basta clicar: https://www.laranjaoriginal.com.br/product-page/m%C3%A1quina-s%C3%B3

  • Um mosaico de vivências

    O surgimento da dita literatura intimista perde-se na noite dos tempos, é verdade... Entretanto, parece ter sido ali pelos fins do século XVIII e os princípios do XIX, que as conhecidas Confessions de Rousseau (1712-1778) assinalam o nascimento da moderna autobiografia, termo usado para designar um tipo de discurso no qual o autor se propõe a falar de si próprio com sinceridade, contando sua vida desde as mais remotas lembranças, sem louvar sua pessoa ou satisfazer a vaidade. Trata-se de uma viagem introspectiva e é compreensível que assim seja, partindo-se do pressuposto de que toda a literatura intimista procura, antes de mais, responder a perguntas essenciais ligadas ao forte desejo de autoconhecimento que inquieta a humanidade. Isso nos remete inclusive àquele antiquíssimo aforismo grego do “conhece-te a ti mesmo” e a perguntas correlatas tais como “quem sou eu?” e “quem sou eu no mundo?”. Tais questões nos permitem distinguir ainda, dentro da literatura intimista, quais textos se encontram mais ligados ao indivíduo em si (quem sou eu?) e quais indicam mais notoriamente a presença do mundo e dos outros (quem sou eu no mundo?). Incluem-se no primeiro tipo os escritos intimistas propriamente ditos, a autobiografia e o diário íntimo, que se estruturam (embora em graus diferentes) em torno do eu, e no segundo tipo, outros textos intimistas em que a presença do eu é mais fortemente temperada pela sua atuação no mundo. “Pequenas crônicas do passado”, do escritor e editor Filipe Moreau, é obra que perpassa essas questões e acrescenta um modo próprio de estar e ver o mundo. Divididos em sete blocos, por assim dizer, temáticos, o leitor encontrará pequenas crônicas que demarcam, como bem observa a escritora Renata Py nas orelhas da obra, o “percurso de um indivíduo no caminho do pensamento”. São textos que, por vezes, se apresentam como memorialísticos, outros autobiográficos, há ainda aqueles de forte inquirição existencial e, finalmente, como não poderia faltar, os de caráter confessional, todos acompanhados da devida datação de quando foram concebidos, dentro de um arco temporal de aproximadamente 20 anos. Evidente que a memória representa o elemento primacial que serve de traço comum ao conjunto da obra, dentro de uma visada de preocupação testemunhal. Alguns manifestam a consciência de registro histórico-social, mas também marcam a história pessoal do autor, que parte para fora do eu para melhor recentrar o que tem de mais íntimo. Ou seja, e por outras palavras, o cotidiano e o banal resultam equilibrados pelo factual e o social. Verdadeiramente uma linha espaço-temporal suficientemente densa para esboçar o percurso de uma vida. A escrita intimista adquire, portanto, uma função investigativa, já que é por meio dela que o sujeito se vê obrigado a repensar o tempo passado e, claro, a forma como esse passado afetou, ou melhor, modificou a sua personalidade. Importante frisar, no entanto, que os textos coligidos em forma de diário (de periodicidade irregular) não assentam exclusivamente em preocupações intimistas. Também encontramos o sujeito que se confessa ao sabor do correr dos dias e um sujeito que diariamente se olha na escrita, recriando-se, reinterpretando-se. Se, por um lado, resulta texto fragmentário que não esconde a busca de uma verdade – e, portanto, obedece a um princípio de desmascaramento que é a consequência natural da vontade de autenticidade –, por outro, aponta para uma multiplicidade de influências (notadamente as literárias) e experiências vivenciais, sobretudo as tocante ao esforço empreendido pelo autor ao longo do tempo para tornar-se um escritor, como de fato ocorreu, e à propósito, o 6º capítulo – “Com jeito de ficção” –, é sensacional. Trechos: “PRAZER DA ESCRITA Em determinados momentos, escrever torna-se um prazer quase erótico. Mas o que me induz, intriga, faz querer a todo custo tentar o domínio dessa arte é a busca de apreender determinadas sensações, determinados momentos do estar no mundo e na vida. Momentos de desistência sempre houve. Não só nesta obsessão de tornar-me escritor, mas também em relação a conquistas menores. A vida é gratuita, não necessita de registro para existir, torna-se até mais leve quando livre de reflexões, indagações, discernimentos e dissertações. O que pode ser escrito é a sobra dela, o que não foi vivido de fato. Torna-se assim uma grande responsabilidade a profissão do que pretende apreendê-la sem feri-la. jan 93.” “EXISTIR É SOFRER? Esta lucidez, esta possibilidade de uma existência serena... depõem juntas contra a hipótese de ter havido uma força propulsora apenas de sofrimentos. Sou contra a ideia de que tudo o que fizemos e ainda faremos na vida só servirá para pagar o preço dela em moeda de sofrimento. Sempre que possível aproveitaremos os bons exemplos de escritores que analisam o mundo de maneira mais lúcida. jan 19.” “SUBVERTENDO A GRAMÁTICA É interessante que se force o nível cultural para cima. Daí minha defesa de que a gramática e a estilística aceitem as variantes mais usuais, mas mantendo as regras da boa literatura, em proteção ao culto. É importante que se defenda a literatura da vulgaridade das propagandas, dos jornalismos, das informações de consumo rápido e em massa, dos trocadilhos, frases de efeito e escritores de formação apenas colegial, por exemplo. jun 93.” “LATIDOS INFERNAIS Por que é tão absurdo (chega a ser ridículo) quando começamos a escrever e somos incomodados por barulhos desagradáveis (de telefone, campainha, mas principalmente, no meu caso, por latidos de cachorros)? E num aspecto, escrever é parecido com lembrar de sonhos. Se a ideia não é explicitada rapidamente ao acordar, ela se perde. Escreve-se tentando acompanhar e acomodar o pensamento, que é mais rápido, enquanto as livres associações vão se sucedendo, algumas mais criativas (geralmente as primeiras, que não se perdem quando há tempo de registrá-las). Também a lembrança do sonho é assim. Enquanto estamos no próprio sonho, todas as associações são inteligíveis, muitas vezes até claras, mas vão se confundindo à medida que retomamos o estado racional. (Por exemplo: neste momento recomeçaram os latidos, e já não lembro por onde ia seguir.) mar 11.” “CONFIANÇA Antigamente eu acharia que o que sinto agora é saudade, mas a vida só faz sentido no que está por vir. Construir um caminho melhor, o tempo todo, é o que se pretende. Se os caminhos se repetem, há o ciclo das estações. Há o ciclo das estações e o dos anos, novas perspectivas, novos sonhos. jul 94." “Pequenas crônicas do passado” é, portanto, o encontro entre duas instâncias, aquele que escreve e aquele que é fixado nessa mesma escrita – não se trata de um confronto entre dois “eus” separados pelo tempo, mas, antes, entre duas individualidades separadas pela atualidade, ou seja, pelo intervalo que medeia entre o tempo real de determinado acontecimento e o tempo decorrido sobre esse mesmo acontecimento que é fixado pela escrita; a obra termina, em certa medida, por assumir uma espécie de papel mediador entre esses dois reflexos que aí se defrontam e concomitantemente se completam hoje. Por: Krishnamurti Góes Dos Anjos Livro: “Pequenas crônicas do passado” – Prosa de Filipe Moreau – Editora Laranja Original – São Paulo – SP, 2020, 208 p. ISBN: 978-65-86042-09-2

  • A respiração do universo no átomo

    “Na órbita das espirais – poesia” é o livro de estreia na literatura da senhora Fernanda Bienhachewski, que a editora Laranja Original traz a público em um momento de pandemia mundial de gravíssimas consequências para nossa espécie. Nas orelhas da obra, lemos que a autora “nasceu em uma família de escritores e desde criança esteve ligada às artes e à literatura. Desenha desde os quatro anos de idade e começou a escrever poesia na pré-adolescência.” Ficamos sabendo também pelo mesmo texto que, atualmente, é produtora cultural e artista plástica, desenvolvendo trabalhos em diversas técnicas como nanquim, aquarela e tinta acrílica, e disso decorre que a obra é enriquecida com belas ilustrações feitas por ela mesma. Os 70 poemas reunidos foram, por assim dizer, organizados em cinco blocos temáticos a saber: Caleidoscópio / Delírios / Os encontros / Rupturas / Despertar. Cumpre salientar ainda que a autora escreveu os poemas entre os anos de 2010 e 2020. Tudo indica, portanto, tratar-se de obra longamente planejada. Amadurecida pelo tempo como deve ser. Não parece ser fruto de arroubos juvenis e ingênuas precipitações como vem se tornando tão comum entre nós, a ponto de causar-nos exaustão tantos lançamentos que nos atiram diuturnamente. Literatura não se faz no calor da hora, no ímpeto puro e simples do sentimento. Há de se perseguir o decantar do sentimento bruto, o árduo depurar da escrita e, mais ainda, o refinar da reescrita, por mais simples que seja o texto. Porque, em literatura, qualquer palavra não serve. É preciso encontrar aquela que, não traindo o sentimento a ponto de o destruir, consiga sugeri-lo tão completamente quanto possível. Capaz de sugerir mais que transmitir, em decorrência da natureza polivalente da vivência interior do autor. A epígrafe que abre a obra, de autoria de Oscar Wilde, (in: De Profundis), é medida aproximada do que aguarda o leitor: “O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?”. E as órbitas existenciais do eu poético da autora, postas em “letra impressa”, são o que marcam fortemente o volume, num sentido de perquirir as curvas das espirais vivenciadas. São, positivamente, poemas que nos deixam entrever o ritmo que se afigura como expressão daquilo que, em seu mundo interior, é permanente movimento, consequência de vivências, sentidos e sentimentos. Não é exatamente isso que a poesia nos permite? Investigar o vago ritmo interior, nascido da conjugação de movimentos desencontrados, mas que formam em seu conjunto uma unidade perfeita, obediente a uma sucessividade permanentemente coesa e que constitui, afinal, o “eu” poético? O mundo da alma da poeta repete o ritmo cósmico, feito do jogo de contrários, numa harmonia só perceptível na síntese da obra. Logo no poema de abertura, “Janelas”, percebemos como ela se situa no mundo. “Um vento para cada janela Uma trajetória em cada paisagem Em um caminho me perco Enquanto outro se anuncia É inevitável ir ao encontro do destino E por maiores que sejam os mistérios O fluxo da vida é sábio As copas das árvores sussurram segredos Soprando-lhes intuição Acalmando o peso das despedidas Somos todos andarilhos Dentro da eterna espiral dos encontros Em um momento te reconheço Noutro é tudo esquecimento” E ela, andarilha, segue: “Expandindo Indo... Permitindo– se”. Permitindo-se e depurando-se. Vale lembrar que, tanto maior o alcance da mensagem de cada poeta em particular, quanto ele consegue encontrar meios no sistema harmônico que cria, com todas as suas metáforas e termos de ligação, de expor o seu mundo interior, seu conteúdo psíquico, sua cosmovisão. Dá-se o poema. Nada mais que uma constelação de metáforas, ou antes, uma polimetáfora, engastada numa cosmogonia de polimetáforas. Dizemos que o poeta lírico está preocupado com o próprio “eu”; o conteúdo dominante na poesia lírica é, pois, a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago desse conteúdo. E, quando ocorre – coisa rara – de a poesia escapar da ordem dos impulsos que comandam uma visão de mundo estreita e alcançam uma cosmovisão totalizante que é também de toda a gente e decorrente de uma universalidade que não exprime somente o “eu” do poeta, temos como que uma espécie de grande tela onde se projetam os “eus” da humanidade, ou seja o “eu” essencial de todo ser humano, das grandes inquietudes humanas. Poema “Dor do poeta”. "Existem alguns momentos Em que a ferida do poeta se abre E sangra Junto com toda a dor do mundo Com a fome Misérias Injustiças O poeta é um cais Um receptor Uma síntese de tudo que há De tudo que sobra Do saldo da perda Nesses dias o poeta se transfigura em versos Se expõe em palavras Agoniza por cima dos livros Desagua em meio à multidão Ah, nesses dias Apesar do iminente desespero Há poesia" Não resta dúvida de que a autora visita temáticas variadas que se cristalizaram nas espirais vivenciadas. Por vezes com enfoque pungente quando aborda a memória, como acontece em “Casa própria”, ou quando aborda as marcas que o encontro com o outro deixam indelevelmente em nós, como acontece no belíssimo poema “O menino”. Encanta-nos o registro de um amor (profundo e saudoso), como lemos em “Amores líquidos”, ou mesmo o amor visto em seu polo negativo de desencanto e cárcere, como encontramos em “Jabuticabas”. Mas a leitura da obra vista em seu conjunto, faz-nos pensar em aprofundamentos outros, sobretudo quando lembramos de belos poemas como “Correspondência”, “Círculos” e “Receituário”, que já apontam para um existencialismo no qual a liberdade de escolha é o elemento gerador do qual ninguém pode ser responsável pelos fracassos ou conquistas, a não ser o próprio ser. Com efeito. A vida humana é mesmo uma série de provas, de tentativas e de experiências. Nossos atos, nossas experiências, nossas reações ao ambiente fixam-se em automatismos psíquicos para tornarem-se, com o tempo, hábitos, depois instintos e ideias inatas. Tal como a semente produz o fruto, e o fruto produz a semente, o pensamento produz a ação, e a ação produz o pensamento. O princípio da semente, como o encontramos na natureza, é princípio universal de expansão e contração dos ciclos. A semente de nossos atos está no nosso pensamento; cada ação nos proporciona uma semente mais complexa, capaz de produzir outra ação ainda mais complexa. Este o abrir-se e fechar-se da espiral, através da qual progredimos. Isto do átomo à molécula, ao cristal, à célula, à planta, ao animal, a seu instinto, ao homem, à sua consciência individual e coletiva, à sua intuição, à raça, à humanidade, ao planeta, ao sistema solar, aos sistemas estelares, aos sistemas de universos, antes e além desses elementos de nosso concebível, antes e além das fases. Talvez por isso já se tenha dito que “A grande respiração do universo é dada pela respiração do átomo.” Tudo é cíclico, tudo vai e vem, progride e regride, mas só retrocede para progredir mais. E, se repete, resume e repousa, isso representa apenas uma retomada de forças, um deter-se para avançar mais para o alto. Eis uma verdade escrita em nosso mais poderoso instinto e aspiração, que é a de subir, sem medida; subir eternamente. A vida não é fim em si mesma, mas meio para um objetivo mais alto: evoluir. Evoluir significa progredir na alegria, no bem; significa libertação das formas inferiores de existência, realização progressiva do pensamento da Criação (ou Deus como queiram). A metade final do poema “Sobre cisões e rupturas” nos faz pensar justamente nessas questões. "Sou um conjunto de forças que se movem, se chocam Se quebram a todo instante O equilíbrio é a utopia que carrego Pois me refaço na desordem Quantas vezes perderei minha superficial identidade Para enfim me firmar em minha alma? Tenho em mim o inconcluso E a pretensão de algum dia me sentir plena Aos poucos o que era pó se transforma em matéria viva Densa, pulsante Vibram em mim centenas de pequenas ilusões Elas me constroem E surge um novo esboço Uma nova máscara é desenhada delicadamente Sem pressa ou demora Ressurjo em meio aos destroços Não me pergunte quem eu sou Pois sem aviso Volto a me desmanchar" Eis o instinto humano universal e insuprimível. Eis aí de onde vem também a “urgência” esse nosso “iminente desespero” (para usar um verso da autora). A nossa necessidade de progresso e a insaciabilidade do desejo. Em “Inquietudes”, lemos: “Um suspiro de quem eu era O pulsar do que gostaria de ser agora Depois de mim, restou-me apenas eu” E mais adiante: “Sou pouco mais do que disponho Uma xícara de chá e um lençol lilás Mas ainda há dentro de mim Essa vontade única de sonhar Que me transporta A esses mundos fantásticos E quando desperto Já não sei quem sou, pois deixo em sonho Tudo que sabia de mim” Ainda três estrofes do Poema “Florescer”: “Trago em mim O impulso da mudança E nem me importo Em ceder todo meu ser A esse plantio desenfreado Meu ventre é sempre terra fértil Crio-me em meio às suas folhas E em cada semente Deposito meus sonhos mais intensos É preciso aprender a doar-se Pois são nos corações fartos Que nascem os mais deliciosos frutos”. A continuação de nossa evolução orgânica só pode ocorrer a partir da evolução psíquica. A contínua renovação permite atingir o equilíbrio por um número sempre maior de caminhos. Em “A arte de deixar algum lugar” a poeta pergunta-se: “Onde eu estaria senão dentro de minhas experiências e encontros?”. E mais adiante conclui: “Nos deixamos um pouco em cada lugar. E dele recebemos a capacidade de nos tornar inesquecíveis”. Veja-se ainda essa estrofe do poema “O mais belo em mim”, quando aborda os recomeços da vida: “Mas a vida e as circunstâncias me ensinaram Que ser forte não é a ausência de rupturas Mas minha capacidade de regeneração”. Só o homem olha para trás, e pela primeira vez percebe a distância que o separa do passado, dele se horroriza porque se encontra no limiar do mais alto psiquismo, representando a forma de transição entre a animalidade e a super-humanidade, entre a ferocidade e a bondade, entre a força e a justiça. E sente que ainda lhe falta aquilo que hoje ainda se entende como um absurdo biológico. O altruísmo, o progresso moral e psíquico. No homem, os objetivos da seleção são alcançados por outros meios, pelo trabalho, pela inteligência, pelos sentimentos. Precisamos afinal compreender que os resultados da experiência da vida, em qualquer nível, gravitam para dentro; lá são destilados os valores e processada a síntese da ação. Para lá descem, em camadas sucessivas, os produtos da vida. Estrofe do poema “Bicho solto”:... “Me entreguei ao meu oposto A uma completa escuridão Sem saber que dentro de mim Estava a bússola que me guiaria” Somente quando agimos como espírito que somos é que sentimos que somos perfeitamente livres. Assim, somos livres no campo das motivações, em nosso espírito, onde dominamos e superamos tudo; ele a única potência que emerge livre, num mundo de fatalidade. Poema “Despertar”. “Foi quando tive uma imensa clareza. Do porquê de todas as coisas, em que revisitei meus processos e pude perceber com olhos atentos a decorrência dos fatos como se fossem uma sequência lógica de acontecimentos. Como se descobrisse a fórmula de alguma louca equação matemática em que pude entender os desígnios do destino. E me senti plenamente em consonância com o universo e seus mistérios. Crescer dói. Mas permanecer imóvel diante da imensa engrenagem da vida é paralisar-se diante das possibilidades. O olhar nítido e preciso, o coração calmo e a alma repleta. Dentro de mim uma voz sussurra serena: Bem-vinda ao seu despertar.” Em Fernanda Bienhachewski, encontramos um universalismo que resulta do encontro e subsequente expressão das perenes inquietações humanas, operado através da sondagem nas profundezas abissais do “eu” da poeta. E nessa sondagem, ou melhor, no percurso de suas espirais, orbita uma poesia que acaba por projetar-se para fora do “eu”, no encalço dos magnos problemas e planos cósmicos. O seu “eu” se estende até um limite no qual o leitor acaba sentindo a mesma força, o mesmo impulso energético que, intuímos, preside a Natureza e o Cosmos, enquanto conjunto de coisas e seres que a mão do homem não transforma. Como um grande espelho em que a arte se mira para traduzir os grandes dramas da condição humana. Resta-nos finalmente, a expectativa de que esse primeiro livro da autora seja ponto de partida para novas incursões no universo do humano onde ainda há tanto a explorar. Livro: “Na órbita das espirais”, Poesia de Fernanda Bienhachewski – Editora Laranja Original – São Paulo – SP, 2020, 128 p. ISBN: 978-65-86042-10-8

  • Leitura Livre

    Seguindo o bom exemplo de alguns escritores, disponibilizamos estes livros gratuitamente, para os leitores que estão (estamos todos) de quarentena. Os autores Luísa Micheletti, Marcelo Soriano e Chico Lopes sugeriram e autorizaram essa divulgação. Os livros estiveram disponíveis de Abril ao final de Julho.

  • Festival ZUM 2019

    Fotolivros em exposição no Festival ZUM 2018 na Biblioteca do IMS Paulista. A Revista ZUM e a Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles anunciam os fotolivros selecionados para a exposição do Festival ZUM 2019. Do total de 182 publicações enviadas, foram selecionados para exposição 55 livros, zines, revistas e catálogos. Desta seleção, destacamos "O Falcão Peregrino", primeiro livro de Feco Hamburger.

  • Editora Laranja Original participa da Flip com Barco Parceiro

    ​Um barco literário vai atracar em Paraty com programação exclusiva durante a Flip 2018. A ação inaugura uma nova modalidade de parceria entre a Festa Literária e editoras independentes. Estacionado no canal Beira Rio, próximo à tenda da praça da Matriz, na margem oposta, o barco servirá de ponto de encontro, descanso e leitura, de quinta a sábado (26 a 28 de julho), entre 9 e 18 horas, e oferecerá atividades com música ao vivo, bate-papo e saraus com autores convidados. Além disso, estão previstos passeios diários de até 3 horas de duração com serviço de bordo (comidinhas e bebidas preparados pelo Bar Tubarão) para conhecer praias enquanto se explora outros horizontes e mais literatura. Confira a prévia dos eventos programados para a 16ª Festa Literária Internacional de Paraty: Intervenções artísticas e oficina de desenhos sob orientação de Alex Cerveny Lançamento do livro Banhei Minha Mãe, de Beto Furquim Barco à deriva com vista para a cidade e o centro histórico, com slam de poetas convidados Relançamento dos livros A infância dos dias, de Laís Barros Martins; Eletrocardiodrama, de Germana Zanettini; A origem do amor, de Filipe Moreau; e "Amores, líquidos e cenas", de Paula Valéria, com sarau e leitura de trechos Passeio até a praia do Rosa com lançamento inédito de Vísceras, de Clara Baccarin Lançamento do livro de contos Nem sofá nem culpa, de Luisa Micheletti Apresentação de voz e violão em show intimista com Beto Furquim e Filipe Moreau, seguido do lançamento do álbum Quânticos Passeio de encerramento, com performance e leitura dramática de textos autorais de Davi Kinski, Luisa Micheletti e Paula Cohen * O barco tem capacidade para 22 passageiros. ** Os horários dos passeios dependem da tábua das marés e estão sujeitos a alterações ou cancelamento. *** Será cobrado um valor de até R$ 100 por passeio, com comida e bebida inclusos, e poderão ser oferecidos livros inéditos em lançamento no pacote. **** Todos os livros da editora estarão à venda em uma banca fixa dentro do barco. #barco #poesia #flip #notícia #literatura

  • Primeira edição da Revista Laranja Original

    Sobre a revista A ideia da revista nasceu da vontade de reunir trabalhos inéditos de nossos colaboradores (autores, ilustradores, designers, prefacistas, orelhistas, revisores), na forma de um livro impresso que integre suas diferentes expressões. A revista é lugar de encontros para essas diferentes artes (poesia, prosa ficcional, desenho, pintura, colagem, fotografia, arte gráfica, crítica literária e de arte). Revista de literatura e arte, pois, partindo da literatura – nossa grande paixão – e abraçando todas as expressões que podem compor um livro. Pretende-se que o lançamento de uma nova revista aconteça a cada nove meses, e a primeiro deles deverá se dar no outono de 2018. Estamos felizes por receber a arte de nossos colaboradores, que integrarão esta primeira edição. As regras de envio do material (para os que participaram ou participam de algum livro da editora - finalizado ou em andamento) estão descritas abaixo. Os trabalhos de colaboradores da editora deverão ser enviados para o e-mail: filipemoreau@gmail.com Algumas ‘regras’ para publicação A revista publicará apenas material inédito – que não conste em outro formato impresso – livros ou revistas. A data final para recebimento de material para esta edição é 10 de março de 2018. Prosa Recebemos: artigos, críticas literárias, contos, crônicas, opinião de arte. Tamanho do texto – até 20.000 caracteres com espaço. Os artigos e análises literárias devem conter um resumo (com, no máximo, mil caracteres). Poesia Aceitamos de 1 a 10 poemas inéditos (não publicados em outro material impresso). Imagens Recebemos: - Ilustrações, fotografia, artes gráficas em geral. Enviar em formato de imagem (jpg, png, gif), em alta resolução em link (wetransfer...) ou anexadas no email, com uma pequena descrição (título da obra e material utilizado). Para todos Cada colaborador deve mandar uma breve biografia, entre 500 a 1.000 caracteres com espaço. Também precisa assinar o contrato de concessão de imagem ou texto (vide anexo). Imprimir em 2 vias, completar com dados pessoais, assinar e enviar para o endereço da editora: Revista Laranja Original Rua Capote Valente, 1198 Pinheiros. São Paulo – SP CEP 05409-003 Sobre a seleção do material Vamos fazer uma avaliação de qualidade, quantidade e formato dos textos recebidos. Se recebermos material em grande quantidade, vamos selecionar alguns para esta primeira edição da revista e guardar o excedente para as edições futuras – sempre comunicando o autor antes de qualquer uso do mesmo. Sobre o lançamento Vamos organizar um sarau de lançamento no mês de maio na cidade de São Paulo (local e data ainda a definir). Cada colaborador receberá 5 exemplares da revista de presente, os demais exemplares estarão à venda pelo valor simbólico de dez reais, apenas para custear alguns gastos de impressão. Por enquanto é isso! Mais novidades virão por email. Obrigad@! #revista #revistadearte #revistadeliteratura

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