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Entrevista Hugo Almeida - Livro Certos Casais


Conversamos hoje com o escritor Hugo Almeida (1952), autor de Certos casais (Laranja Original), seu quarto volume de contos, que reúne nove textos, divididos em dois livros. O lançamento será no dia 27 de setembro, segunda-feira, a partir das 19h30, no canal do YouTube da editora Laranja Original. Hugo Almeida é mineiro, mora em São Paulo desde 1984 e tem mais de dez livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Prêmio Nestlé 1988) e os infantojuvenis Viagem à Lua de canoa [incluído no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) de 2011], Todo mundo é diferente, Porto Seguro, outra história e Meu nome é Fogo. Doutor em Literatura Brasileira pela USP, organizou Osman Lins: o sopro na argila (2004), ensaios, e as coletâneas de contos Nove, novena: variações (2016) e Feliz aniversário, Clarice (2020).


Hugo, suas narrativas têm um ritmo rápido, como pensamentos desta época acelerada em que vivemos. As personagens transitam com uma liberdade ligeira e nos prendem do começo ao fim. Já se nota isso em “O sono do vulcão”, conto que abre o livro. Como você trabalha o ritmo na sua escrita? Existe um critério?


H.A.: Obrigado pelo que disse e pela pergunta. O critério é o que texto agrade ao ouvido, tenha consistência e convença. E que prenda o leitor (que bom você ter sentido isso na leitura do livro). O ritmo do bom texto em prosa está próximo do da poesia. Ritmo é essencial, ao lado da harmonia, da sonoridade, da verossimilhança, ainda que a situação narrada possa parecer absurda, irreal. E precisa haver uma relação íntima entre o narrado e o modo de narrar. Cada conto exige um texto diferente, específico: diálogo, descrição, fluxo de consciência, vozes cruzadas e às vezes a combinação disso tudo.





Além do ritmo, é fácil notar que o tamanho da fonte do texto dá sinais ao leitor, com letras menores em alguns pequenos trechos, por exemplo. Como é a sua relação com essa etapa visual na escrita?


H.A.: Quando as personagens falam baixo, sussurram uma frase insinuante para alguém, optei por usar uma letra bem menor no texto, um casamento da forma com o conteúdo. Gosto disso. Imagino que funcione na história, o leitor percebe que aquela frase ou palavra não poderia ser dita em voz alta. Ao mesmo tempo, não gosto de palavras em maiúsculas ou negrito, isso faz o leitor ler o destaque antes da hora. E prefiro o texto conotativo, que sugere, ao denotativo, que explicita.


Uma expressão de que gostei bastante é aquela com que você descreve a personagem Tâmara: parece uma fruta que não existe, eu dizia, e ficava vermelho”. Sua escrita tem métrica e poesia musical. Cada fala diz bastante sobre as personagens. Como é a sua relação com a música?


H.A.: O leitor tem liberdade na leitura e interpretação, claro, e sua pergunta é interessante, mas a analogia no conto não é com a Tâmara, a personagem: é com o seio da moça. Observe que antes da frase que você citou, o narrador diz: “Aos 22 (dela), nos casamos. Vinte e dois. A empinada altivez dos vinte e dois. Arfar de coração e blusa”. E aqui surge, entre parêntesis, a frase “parece uma fruta que não existe...”. Sua percepção de que existem métrica e poesia musical nos textos e da relação delas com as personagens me alegra imensamente. A música está na vida do escritor, do artista, de toda pessoa que tem sensibilidade para captar e sentir o belo, o sublime e a dor da existência humana, esse divino mistério de viver.


Toulouse-Lautrec, Drummond, Mozart, Rodin, Klimt, Van Gogh. Várias referências artísticas de peso aparecem em sua escrita e elas nos ajudam a descrever as cenas. Como se dá a influência desses grandes artistas na sua vida?


H.A.: É isso mesmo que você disse. Os quadros, as músicas, a escultura e os versos ajudam a compor as cenas, o espaço, a ambientação, a descrever personagens ou revelar seu estado de espírito. O brilhante contista Francisco de Morais Mendes, autor do arguto (e generoso) texto da contracapa de Certos casais, leu o livro com o computador ligado: cada pintura citada ele procurava no Google, o que enriqueceu a leitura, me disse. A ópera “Don Giovanni” (o libertino punido), de Mozart, dá o clima de certos momentos de “O sono do vulcão”. No mesmo conto, a citação de Rodin aparece na descrição do pé de uma mulher (“Calcanhar, tornozelo, tudo perfeito, quente, Rodin vivo”) que um homem tocava num voo noturno. Na minha vida, como nos meus livros, grandes artistas são sempre muito bem-vindos, têm espaço infinito. Eles me ajudam, como a todos nós, a ver e sentir melhor o mundo, as pessoas, a bonita e às vezes angustiante complexidade da vida. Minha mulher e eu temos uma biblioteca razoável de grandes pintores e, sempre que podemos, visitamos bons museus. Drummond é presença constante nos meus textos desde o primeiro livro, Globo da morte, de 1975. Ler Drummond é conhecer o vasto mundo, ainda que não seja solução.


O conjunto dos contos tem ares de romance, mas nos permite ler cada conto com grande autonomia. Essa peculiaridade surgiu naturalmente em Certos casais ou foi estabelecida desde o início do projeto?


H.A.: Parte desse livro é bem antiga, de 1991, como o conto “Outra vida para dona Olímpia”. A partir dele escrevi outros contos do Livro I, com personagens citadas ali, três gerações de uma mesma família. A ideia era esta: uma ligação entre as histórias, sem haver dependência, cada uma pode ser lida separadamente, são os “certos casais”. O conjunto faz mais sentido. A escritora e artista Beatriz Magalhães escreveu na orelha (um primor, um brinco) de Certos casais que no conto “Amor radioativo”, do Livro II, está o “casal certo”, Marie e Pierre Curie. Não posso deixar de registrar que devo a W. J. Solha, grande escritor e amigo, a divisão de Certos casais em dois livros. Sou muito grato a ele. Na versão inicial não havia essa separação, que é tão evidente... O título me agrada porque não é o de nenhum dos contos e abarca todos do livro, a exemplo de Sagarana, de Guimarães Rosa, e Nove, novena, de Osman Lins. Não estou comparando, pelamordeDeus. Apenas estou satisfeito por ter conseguido um título abrangente.


Assim, nessa prosa corriqueira, de conto em conto, vem a unidade de acompanhar a trajetória de vida das personagens. Como Tâmara, que a vemos em várias situações e momentos, descritos ou lembrados por ela mesma ou por outra personagem. Passa-se a vida de um trecho para o outro. Gosto de como trabalha a passagem do tempo e gostaria que falasse sobre isso.


H.A.: Obrigado. Tentei mostrar as diferentes visões das personagens, como cada uma percebia as outras, cada uma na sua solidão, ao longo do tempo, algumas desde a infância até a idade adulta e outras até a velhice ou a morte. Alguns episódios parecem ser uma coisa, e não são, mas poderiam ser. Aquela velha história do engano das aparências. A decisão final é do leitor. Quanto ao tempo nesses contos, na maior parte é o cronológico, principalmente no último, do casal Curie. Há também o psicológico, o histórico e o cíclico, o eterno retorno. Gostaria de lembrar que, ao lado das questões do cotidiano, da vida prosaica, digamos mundana, profana, há ainda o aspecto religioso em vários contos, não somente em “Outra vida para dona Olímpia”, que se passa na Semana Santa em Diamantina. Até os dez mandamentos estruturam e regem um dos contos. E no primeiro, “O sono do vulcão”, lateja um veio bíblico. O verbo não se fez carne? Por baixo de cada história narrada, há outra oculta para o leitor descobrir.


As frases curtas e a pontuação também nos dão a sensação dos segundos voando, do tempo escorregando pelas mãos. Sente a vida assim?


H.A.: Penso ser essencial distinguir o narrador do autor. Em alguns momentos, eles podem até se confundir, mas não sempre. Se um narrador-personagem diz, por exemplo, que “Deus fez o mundo à toa”, não quer dizer que eu concorde com ele. A ânsia de aproveitar cada segundo tem muito a ver com a chamada vida moderna, o que se reflete nas personagens e nas histórias. E isso deve ser expresso no texto, na linguagem, na pontuação. Mas minha relação com o tempo, sobretudo quanto à literatura, é mais tranquila. Basta ver que parte desse livro tem três décadas e outras, duas. Não tenho pressa. Nada ali é recente, mas é claro que mexi nos textos pouco antes de publicá-los.


As frases definem bem a personalidade das personagens. Um exemplo está no conto “A brisa na varanda”, com a passagem: Quem seguir a trilha de um homem encontra coisa”. Ótima maneira de começar a contar uma história. Conte para o leitor: o que ele vai encontrar em Certos casais?


H.A.: Espero que ele encontre o que deve haver em boa literatura: um texto bem escrito e algo original, com histórias de gente vivendo momentos de aflição, mas também de ternura e busca de encontro: a solidão sempre foi marca do gênero conto. Procuro iniciar um texto com uma frase curta, incisiva, que desperte o interesse do leitor pela história. Cortázar dizia que é preciso fisgar o leitor desde o título e a frase inicial. Quase todos os títulos dos contos desse livro são metafóricos, como o que você citou. Não há brisa nem varanda nele. Ao contrário, só tormento. Uma briga de casal, por exemplo, tem o título de “O pão nosso de cada dia, vosso reino (intervalo para falar de flores)”.


Hugo, gostaria muito de que falasse da sua trajetória literária. Tão rica e cheia de momentos interessantes. Deixe também um link para o leitor pode conhecer mais o seu trabalho. Gostaria, em especial (por ser fã), que nos contasse sobre o trabalho Osman Lins: o sopro na argila.


H.A.: Vou tentar ser sucinto. Na juventude, participei da revista literária Silêncio, nos anos 1970, em Belo Horizonte, com um grupo novos autores e estudantes da UFMG (eu cursava Comunicação; sou jornalista), entre eles o escritor Luiz Fernando Emediato, hoje editor da Geração Editorial, amigo há quase 50 anos. A revista foi censurada pela ditadura militar. Nela, publiquei meus primeiros contos. A estreia em livro se deu em 1975 com Globo da morte, que teve boa acolhida de autores consagrados, como Osman Lins, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Fonseca. Sempre trabalhei como jornalista, enquanto escrevia ficção para adultos e jovens. Já morando em São Paulo, ganhei o Prêmio Nestlé em 1988 com o romance Mil corações solitários, que teve três edições pela Scipione. Em 2005, defendi tese de doutorado na USP sobre o A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins. Um ano antes, organizei e prefaciei o livro de ensaios Osman Lins: o sopro na argila, reunindo 18 estudiosos do autor de Lisbela e o prisioneiro, entre eles Iná Camargo Costa, José Paulo Paes, Modesto Carone e Sandra Nitrini. Esse livro despertou em muita gente o interesse pela obra de Osman Lins e tem sido citado em dissertações e teses sobre o autor. A professora e poeta Elizabeth Hazin, que coordena um grupo de estudos da obra de Osman Lins, me contou que O sopro na argila deu origem a uma nova geração de osmanianos. Ela sugeria a leitura daqueles ensaios a seus alunos na Universidade de Brasília. Além desse livro, organizei, juntamente com Rosângela Felício dos Santos, Quero falar de sonhos, de artigos de Osman Lins anteriores a Avalovara. Na ficção, organizei as coletâneas de contos Nove, novena: variações, em 2016, e Feliz aniversário, Clarice, em 2020. No início de abril de 2020, publiquei o artigo “Contos dos anos 2000 já merecem uma antologia” na revista digital São Paulo Review, que teve boa repercussão. Depois da tese, esse é o meu mergulho literário de maior fôlego. Ali, o leitor pode conhecer mais de 160 contistas e um pouco do que tenho feito em literatura, sempre de maneira discreta, quero distância de holofotes. Não tenho blog ou site nem estou em redes sociais. Na nota sobre mim, no fim do artigo sobre o conto deste século, está citado o então inédito Certos casais, que a Laranja Original publica agora (sou grato ao escritor e amigo Ronaldo Cagiano, que me estimulou a enviar os originais à editora; agradeço também ao editor Filipe Moreau e equipe, que acolheram tão bem o livro) e há o link da palestra que fiz na ABL em 2018, “Osman Lins, 40 anos depois, mais atual”, que já tem quase 6 mil visualizações no Youtube, número expressivo para vídeos sobre literatura. O que me espanta, mas também alegra por ajudar a divulgar a obra de Osman Lins.


Hugo, muito obrigada pelo seu tempo. Que Certos casais ganhe vida por aí. Gostaria de finalizar a entrevista com você nos contando sobre futuros projetos ou mesmo algum conselho para a galera jovem que tem interesse em seguir o caminho literário.


H.A.: Disponha, Renata. Eu que agradeço pela leitura de meus contos e torcida por Certos casais e pelas ótimas perguntas. Amo o que faço, escrever ficção. E falar sobre literatura e Osman Lins é uma alegria permanente. Meu projeto é continuar a escrever e publicar. Aos novos escritores e a candidatos à carreira literária, minha sugestão é a mesma de todo autor experiente: ler bastante e não ter pressa em publicar. Alguns dos autores brasileiros indispensáveis: Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Osman Lins, Clarice Lispector, Rubem Braga, Dalton Trevisan, Drummond, Bandeira, João Cabral de Melo Neto. Um livro essencial para quem quer ser escritor é Guerra sem testemunhas, de Osman Lins, infelizmente encontrável hoje apenas em boas bibliotecas e em sebos. Esse livro tem feito uma enorme falta às novas gerações. Precisa ser reeditado.






Foto autor: Bárbara Braga
Projeto gráfico: Marcelo Girard
Foto da capa: Beatriz Magalhães
Entrevista: Renata Py






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