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A respiração do universo no átomo

“Na órbita das espirais – poesia” é o livro de estreia na literatura da senhora Fernanda Bienhachewski, que a editora Laranja Original traz a público em um momento de pandemia mundial de gravíssimas consequências para nossa espécie. Nas orelhas da obra, lemos que a autora “nasceu em uma família de escritores e desde criança esteve ligada às artes e à literatura. Desenha desde os quatro anos de idade e começou a escrever poesia na pré-adolescência.” Ficamos sabendo também pelo mesmo texto que, atualmente, é produtora cultural e artista plástica, desenvolvendo trabalhos em diversas técnicas como nanquim, aquarela e tinta acrílica, e disso decorre que a obra é enriquecida com belas ilustrações feitas por ela mesma.

Os 70 poemas reunidos foram, por assim dizer, organizados em cinco blocos temáticos a saber: Caleidoscópio / Delírios / Os encontros / Rupturas / Despertar. Cumpre salientar ainda que a autora escreveu os poemas entre os anos de 2010 e 2020. Tudo indica, portanto, tratar-se de obra longamente planejada. Amadurecida pelo tempo como deve ser. Não parece ser fruto de arroubos juvenis e ingênuas precipitações como vem se tornando tão comum entre nós, a ponto de causar-nos exaustão tantos lançamentos que nos atiram diuturnamente. Literatura não se faz no calor da hora, no ímpeto puro e simples do sentimento. Há de se perseguir o decantar do sentimento bruto, o árduo depurar da escrita e, mais ainda, o refinar da reescrita, por mais simples que seja o texto. Porque, em literatura, qualquer palavra não serve. É preciso encontrar aquela que, não traindo o sentimento a ponto de o destruir, consiga sugeri-lo tão completamente quanto possível. Capaz de sugerir mais que transmitir, em decorrência da natureza polivalente da vivência interior do autor.

A epígrafe que abre a obra, de autoria de Oscar Wilde, (in: De Profundis), é medida aproximada do que aguarda o leitor: “O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?”. E as órbitas existenciais do eu poético da autora, postas em “letra impressa”, são o que marcam fortemente o volume, num sentido de perquirir as curvas das espirais vivenciadas. São, positivamente, poemas que nos deixam entrever o ritmo que se afigura como expressão daquilo que, em seu mundo interior, é permanente movimento, consequência de vivências, sentidos e sentimentos. Não é exatamente isso que a poesia nos permite? Investigar o vago ritmo interior, nascido da conjugação de movimentos desencontrados, mas que formam em seu conjunto uma unidade perfeita, obediente a uma sucessividade permanentemente coesa e que constitui, afinal, o “eu” poético? O mundo da alma da poeta repete o ritmo cósmico, feito do jogo de contrários, numa harmonia só perceptível na síntese da obra.

Logo no poema de abertura, “Janelas”, percebemos como ela se situa no mundo.

“Um vento para cada janela

Uma trajetória em cada paisagem

Em um caminho me perco

Enquanto outro se anuncia

É inevitável ir ao encontro do destino

E por maiores que sejam os mistérios

O fluxo da vida é sábio

As copas das árvores sussurram segredos

Soprando-lhes intuição

Acalmando o peso das despedidas

Somos todos andarilhos

Dentro da eterna espiral dos encontros

Em um momento te reconheço

Noutro é tudo esquecimento”

E ela, andarilha, segue:

“Expandindo

Indo...

Permitindo– se”.

Permitindo-se e depurando-se. Vale lembrar que, tanto maior o alcance da mensagem de cada poeta em particular, quanto ele consegue encontrar meios no sistema harmônico que cria, com todas as suas metáforas e termos de ligação, de expor o seu mundo interior, seu conteúdo psíquico, sua cosmovisão. Dá-se o poema. Nada mais que uma constelação de metáforas, ou antes, uma polimetáfora, engastada numa cosmogonia de polimetáforas.

Dizemos que o poeta lírico está preocupado com o próprio “eu”; o conteúdo dominante na poesia lírica é, pois, a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago desse conteúdo. E, quando ocorre – coisa rara – de a poesia escapar da ordem dos impulsos que comandam uma visão de mundo estreita e alcançam uma cosmovisão totalizante que é também de toda a gente e decorrente de uma universalidade que não exprime somente o “eu” do poeta, temos como que uma espécie de grande tela onde se projetam os “eus” da humanidade, ou seja o “eu” essencial de todo ser humano, das grandes inquietudes humanas.

Poema “Dor do poeta”.

"Existem alguns momentos

Em que a ferida do poeta se abre

E sangra

Junto com toda a dor do mundo

Com a fome

Misérias

Injustiças

O poeta é um cais

Um receptor

Uma síntese de tudo que há

De tudo que sobra

Do saldo da perda

Nesses dias o poeta se transfigura em versos

Se expõe em palavras

Agoniza por cima dos livros

Desagua em meio à multidão

Ah, nesses dias

Apesar do iminente desespero

Há poesia"

Não resta dúvida de que a autora visita temáticas variadas que se cristalizaram nas espirais vivenciadas. Por vezes com enfoque pungente quando aborda a memória, como acontece em “Casa própria”, ou quando aborda as marcas que o encontro com o outro deixam indelevelmente em nós, como acontece no belíssimo poema “O menino”. Encanta-nos o registro de um amor (profundo e saudoso), como lemos em “Amores líquidos”, ou mesmo o amor visto em seu polo negativo de desencanto e cárcere, como encontramos em “Jabuticabas”. Mas a leitura da obra vista em seu conjunto, faz-nos pensar em aprofundamentos outros, sobretudo quando lembramos de belos poemas como “Correspondência”, “Círculos” e “Receituário”, que já apontam para um existencialismo no qual a liberdade de escolha é o elemento gerador do qual ninguém pode ser responsável pelos fracassos ou conquistas, a não ser o próprio ser.

Com efeito. A vida humana é mesmo uma série de provas, de tentativas e de experiências. Nossos atos, nossas experiências, nossas reações ao ambiente fixam-se em automatismos psíquicos para tornarem-se, com o tempo, hábitos, depois instintos e ideias inatas. Tal como a semente produz o fruto, e o fruto produz a semente, o pensamento produz a ação, e a ação produz o pensamento. O princípio da semente, como o encontramos na natureza, é princípio universal de expansão e contração dos ciclos. A semente de nossos atos está no nosso pensamento; cada ação nos proporciona uma semente mais complexa, capaz de produzir outra ação ainda mais complexa. Este o abrir-se e fechar-se da espiral, através da qual progredimos. Isto do átomo à molécula, ao cristal, à célula, à planta, ao animal, a seu instinto, ao homem, à sua consciência individual e coletiva, à sua intuição, à raça, à humanidade, ao planeta, ao sistema solar, aos sistemas estelares, aos sistemas de universos, antes e além desses elementos de nosso concebível, antes e além das fases. Talvez por isso já se tenha dito que “A grande respiração do universo é dada pela respiração do átomo.”

Tudo é cíclico, tudo vai e vem, progride e regride, mas só retrocede para progredir mais. E, se repete, resume e repousa, isso representa apenas uma retomada de forças, um deter-se para avançar mais para o alto. Eis uma verdade escrita em nosso mais poderoso instinto e aspiração, que é a de subir, sem medida; subir eternamente. A vida não é fim em si mesma, mas meio para um objetivo mais alto: evoluir. Evoluir significa progredir na alegria, no bem; significa libertação das formas inferiores de existência, realização progressiva do pensamento da Criação (ou Deus como queiram).

A metade final do poema “Sobre cisões e rupturas” nos faz pensar justamente nessas questões.

"Sou um conjunto de forças que se movem, se chocam

Se quebram a todo instante

O equilíbrio é a utopia que carrego

Pois me refaço na desordem

Quantas vezes perderei minha superficial identidade

Para enfim me firmar em minha alma?

Tenho em mim o inconcluso

E a pretensão de algum dia me sentir plena

Aos poucos o que era pó se transforma em matéria viva

Densa, pulsante

Vibram em mim centenas de pequenas ilusões

Elas me constroem

E surge um novo esboço

Uma nova máscara é desenhada delicadamente

Sem pressa ou demora

Ressurjo em meio aos destroços

Não me pergunte quem eu sou

Pois sem aviso

Volto a me desmanchar"

Eis o instinto humano universal e insuprimível. Eis aí de onde vem também a “urgência” esse nosso “iminente desespero” (para usar um verso da autora). A nossa necessidade de progresso e a insaciabilidade do desejo. Em “Inquietudes”, lemos:

“Um suspiro de quem eu era

O pulsar do que gostaria de ser agora

Depois de mim, restou-me apenas eu”

E mais adiante:

“Sou pouco mais do que disponho

Uma xícara de chá e um lençol lilás

Mas ainda há dentro de mim

Essa vontade única de sonhar

Que me transporta

A esses mundos fantásticos

E quando desperto

Já não sei quem sou, pois deixo em sonho

Tudo que sabia de mim”

Ainda três estrofes do Poema “Florescer”:

“Trago em mim

O impulso da mudança

E nem me importo

Em ceder todo meu ser

A esse plantio desenfreado

Meu ventre é sempre terra fértil

Crio-me em meio às suas folhas

E em cada semente

Deposito meus sonhos mais intensos

É preciso aprender a doar-se

Pois são nos corações fartos

Que nascem os mais deliciosos frutos”.

A continuação de nossa evolução orgânica só pode ocorrer a partir da evolução psíquica. A contínua renovação permite atingir o equilíbrio por um número sempre maior de caminhos. Em “A arte de deixar algum lugar” a poeta pergunta-se: “Onde eu estaria senão dentro de minhas experiências e encontros?”.


E mais adiante conclui:

“Nos deixamos um pouco em cada lugar.

E dele recebemos a capacidade de nos tornar inesquecíveis”.

Veja-se ainda essa estrofe do poema “O mais belo em mim”, quando aborda os recomeços da vida:

“Mas a vida e as circunstâncias me ensinaram

Que ser forte não é a ausência de rupturas

Mas minha capacidade de regeneração”.

Só o homem olha para trás, e pela primeira vez percebe a distância que o separa do passado, dele se horroriza porque se encontra no limiar do mais alto psiquismo, representando a forma de transição entre a animalidade e a super-humanidade, entre a ferocidade e a bondade, entre a força e a justiça. E sente que ainda lhe falta aquilo que hoje ainda se entende como um absurdo biológico. O altruísmo, o progresso moral e psíquico. No homem, os objetivos da seleção são alcançados por outros meios, pelo trabalho, pela inteligência, pelos sentimentos. Precisamos afinal compreender que os resultados da experiência da vida, em qualquer nível, gravitam para dentro; lá são destilados os valores e processada a síntese da ação. Para lá descem, em camadas sucessivas, os produtos da vida. Estrofe do poema “Bicho solto”:...

“Me entreguei ao meu oposto

A uma completa escuridão

Sem saber que dentro de mim

Estava a bússola que me guiaria”

Somente quando agimos como espírito que somos é que sentimos que somos perfeitamente livres. Assim, somos livres no campo das motivações, em nosso espírito, onde dominamos e superamos tudo; ele a única potência que emerge livre, num mundo de fatalidade. Poema “Despertar”.

“Foi quando tive uma imensa clareza.

Do porquê de todas as coisas, em que revisitei meus processos e pude perceber

com olhos atentos a decorrência dos fatos como se fossem uma sequência

lógica de acontecimentos.

Como se descobrisse a fórmula de alguma louca equação matemática em que

pude entender os desígnios do destino. E me senti plenamente em consonância

com o universo e seus mistérios.

Crescer dói.

Mas permanecer imóvel diante da imensa engrenagem da vida é paralisar-se

diante das possibilidades.

O olhar nítido e preciso, o coração calmo e a alma repleta.

Dentro de mim uma voz sussurra serena:

Bem-vinda ao seu despertar.”

Em Fernanda Bienhachewski, encontramos um universalismo que resulta do encontro e subsequente expressão das perenes inquietações humanas, operado através da sondagem nas profundezas abissais do “eu” da poeta. E nessa sondagem, ou melhor, no percurso de suas espirais, orbita uma poesia que acaba por projetar-se para fora do “eu”, no encalço dos magnos problemas e planos cósmicos. O seu “eu” se estende até um limite no qual o leitor acaba sentindo a mesma força, o mesmo impulso energético que, intuímos, preside a Natureza e o Cosmos, enquanto conjunto de coisas e seres que a mão do homem não transforma. Como um grande espelho em que a arte se mira para traduzir os grandes dramas da condição humana. Resta-nos finalmente, a expectativa de que esse primeiro livro da autora seja ponto de partida para novas incursões no universo do humano onde ainda há tanto a explorar.

Livro: “Na órbita das espirais”, Poesia de Fernanda Bienhachewski – Editora Laranja Original – São Paulo – SP, 2020, 128 p. ISBN: 978-65-86042-10-8

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