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'Um incômodo vital' - prefácio sobre Pasolini no livro de Davi Kinski


“Pasolini, do Neorrealismo ao Cinema Poesia”, de Davi Kinski, com ilustrações de Marcos Garuti será lançado em 03 de setembro, sábado, das 18h às 22 h, na 24a Bienal Internacional do Livro, no estande da editora – M 87

O escritor, crítico e professor de cinema, Franthiesco Ballerini escreveu o instigante prefácio do livro. Leia:

O cineasta dinamarquês Lars Von Trier disse, uma vez, que “um filme deve ser como uma pedra no sapato”. Ou seja, ele deve ser tão marcante na vida do espectador que não se pode dar um passo sem pensar em sua incômoda existência. Cineastas como Lars e o austríaco Michael Haneke, dois dos diretores vivos que mais admiro, só fazem filmes da forma como fazem hoje porque, lá atrás, na sofrida Itália pós-Segunda Guerra Mundial, Pier Paolo Pasolini começou a fazer uma escola. Uma escola que virava as costas para o cinema entretenimento, cinema este que utiliza subterfúgios de enquadramentos, roteiro, fotografia e atuação para emoldurar de forma falsa o sexo e a violência.

A escola de Pasolini, por sua vez, só foi possível porque outros italianos, especificamente Roberto Rossellini e Federico Fellini, abriram o maior movimento cinematográfico de todos os tempos, o Neorrealismo Italiano, também trabalhando com pedras no sapato, dilacerando a desigualdade social do pós-guerra, pondo fim à tola dicotomia Bem x Mal — tão comum no cinema de Hollywood —, mas, acima de tudo, dando grande poder à imagem. Porque cinema se faz com imagem. Um enquadramento benfeito, um plano-sequência bem escolhido podem dizer muito melhor do que narrativa em off ou diálogo. É assim com a belíssima imagem do pai segurando a mão do pequeno filho, debaixo dos escombros de Berlim, ouvindo a voz de Hitler no disco, em Alemanha, Ano Zero (1947), remetendo ao fantasma do nazismo, à luz no fim do túnel, à inocência da criança e ao medo do adulto. Tudo isso em uma imagem.

Pasolini, no entanto, não se acomodou a dar os braços para os criadores do movimento. Quis ir além, e para isso brigou, rompeu e foi criticado. Se o católico Rossellini desnudava a desigualdade numa visão de esquerda pós-nazismo, e o nostálgico Fellini falava da realidade dos “sem-bicicleta”, as classes mais altas, Pasolini colocou sua pedra onde mais incomoda os conservadores: a real violência — física e simbólica — e o sexo sem luzes, música ou enquadramentos. O sexo proibido: a homossexualidade, razão de sua perseguição e morte.

Ainda que Pasolini tenha nascido nas letras escritas, na poesia, e migrado depois para o roteiro, é admirável como pode uma mesma pessoa ser igualmente genial na forma e conteúdo escrito, como nas escolhas imagéticas e tudo o que eles envolvem: atuação, fotografia, composição de arte, e, claro, roteiro. O que só demonstra que Pasolini não rompe com os criadores do Neorrealismo sob a ótica da importância da imagem como narradora de histórias, mas sim, na angulação dos filmes, a escolha dos temas e o foco narrativo. Diria, até, que Pasolini vai além de mestres predecessores como Jean Renoir, que, embora tenha obras-primas como A Regra do Jogo (1939), era demasiadamente focado no diálogo, nas entrelinhas, condizente com o movimento que ele ajudou a fundar, o Realismo Poético Francês, um predecessor importante do próprio Neorrealismo Italiano.

Cinema, no entanto, é narrar por imagens. São elas que devem gritar nos olhos do espectador, tornando-o ativo durante todo o processo narrativo. Pasolini era um grande mestre nisso, e para citar um exemplo — um filme dele que talvez não seja o maior, mas que me tocou profundamente — falemos de Teorema.

Teorema é uma gigante pedra no sapato da família burguesa italiana dos anos 1960, bem como das instituições conservadoras. Pasolini escolheu um ator, para interpretar o rapaz que muda radicalmente a vida daquela família, com um semblante parecidíssimo ao Jesus que a Igreja Católica pintou ao longo dos séculos — loiro, olhos claros, pele clara. Uma grande provocação à Igreja, ao mesmo tempo em que, também, uma grande homenagem. Pois este rapaz faz toda a família jogar fora as blindagens dos seus próprios valores. Do pai industrial que começa a questionar seu apego ao poder e ao dinheiro, da esposa que questiona a monotonia e monogamia da instituição casamento, do filho que descobre a homossexualidade etc. O filme nasceu de um romance, que por sua vez nasceu de um poema de Pasolini, em 1968. No entanto, muito além de ver um excelente trabalho de roteiro adaptado nas telas, vê-se uma escolha criteriosa de imagens que, poeticamente, vão traçando a dor e o desejo daquela família. Da empregada que pede para ser enterrada e cujas lágrimas vão inundando seu corpo, ao pai industrial que, na cena catártica final, anda nu sobre um solo desértico que parece queimar sob seus pés, numa mistura mística de céu e inferno, prisão e libertação. Não se trata de uma obra que lhe dá estas respostas prontas. Assim como todo o resto do bom cinema de autor europeu pós-Neorrealismo Italiano, os filmes modernos sugerem, mas não aprisionam significações. O que torna a obra de Pasolini ainda mais eterna. Como uma poesia, pode ser lida e relida de diversas formas. Vista no ano em que foi filmada, em 1968, dialogava diretamente com as revoluções sociais e sexuais daquele momento. Mas em pleno século XXI, Pasolini nos lança perguntas incômodas: Que tipo de produtos audiovisuais estamos consumindo? Meio século distante de suas principais obras, qual é o legado de sua originalidade? Por que o mundo, após consumir o realismo cortante de suas cenas de violência e sexo, ainda considera bom entretenimento cafonices audiovisuais como 50 Tons de Cinza? Mudando para o campo da violência, como alguém é capaz de ser um voyeur ávido por sangue em caça-níqueis sanguinolentamente divertidos como Velozes e Furiosos tendo havido um diretor que mostrou como é a violência de verdade? Por que os filhos de Pasolini — Lars Von Trier e Michael Haneke — são tão raros?

Ouso responder, de forma dupla: Pasolini não é reproduzível, não tão facilmente, mesmo após cinquenta anos. Não basta decupá-lo, dissecá-lo semioticamente. Para ser Pasolini, é preciso dar o salto que ele deu à sua época. Quem é capaz de fazê-lo hoje? Por fim, outra hipótese: sua raridade neste mundo reside no fato de que vivemos no século no qual a tecnologia, a comida, os quartos de hotéis, os canais de TV e até as escolas buscam nos blindar de conforto e segurança. Ser um cineasta pedra no sapato não é o primeiro objeto de desejo público mundial. Pode ser. Mas em tempos de ataques terroristas vitimando cada esquina do globo, com a fé matando por questões políticas, sexuais e religiosas, Pasolini se tornou um incômodo vital.

O Livro 'Pasolini, do Neorrealismo ao Cinema Poesia' de Davi Kinski com ilustrações de Marcos Garuti está à venda em nossa loja virtual no link: www.laranjaoriginal.com.br/pasolini

E será lançado na Bienal do Livro, estande M87, dia 03.09 a partir das 18h.

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