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Entrevista Daniel Knight - Livro: Amarás meu nariz brilhante.



Daniel Knight, radicado em São Paulo desde a adolescência, nasceu em Guaxupé, sul de Minas Gerais, em 1988. Bacharel em Letras pela USP, fez parte da equipe inaugural da editora Tordesilhas (2011-2012) e traduziu, dentre outros títulos, Um amor de Swann, de Marcel Proust. Em 2021, DK lançou, pela Laranja Original, o romance Ninguém nesta família morre de amor, parte da trilogia A ateia. No dia 9 de dezembro, será a vez do segundo volume, Amarás meu nariz brilhante. O pré-lançamento será on-line, pelo canal do YouTube da Laranja Original.




Daniel, agora estamos com o segundo volume de A ateia em mãos. Lembrando ao leitor que

se trata de uma coletânea desmontável, ou seja, que pode ser lida por qualquer volume. Ousaria sugerir que se comece por Amarás meu nariz brilhante?


Por princípio, não aceito recomendações. Ou melhor, aceito por educação, mas não as ponho em prática. Decido o que vou escutar/ler/assistir com base em critérios pessoais, nos quais não aceito intervenções. Estou falando sério: escolher do cardápio do Netflix vira crise existencial se eu estiver acompanhado. Por isso, tenho a coerência de não dar recomendações nem sugestões nem conselhos a quem não gostaria que os retribuísse. O leitor que comece e siga por onde bem entender (pela última página do segundo volume, prosseguindo de trás para diante; abrindo o primeiro volume ao acaso, lendo só os capítulos pares) por sua conta e risco. Escrevi imaginando que cada volume seria lido da esquerda para a direita, do primeiro capítulo ao último, e dando a cada romance independência de enredo para que todos façam sentido se lidos separadamente ou em ordem aleatória.


Logo na abertura do seu livro nota-se que a figura materna foge totalmente dos padrões esperados. Porém, é uma realidade que pode existir em muitas famílias. Fugir dos estereótipos é uma marca em sua escrita que faz o leitor pensar em questões tão arraigadas na história da humanidade, surpreende. É pecado uma mãe faltar ao casamento da filha? Fale um pouco sobre.


Para mim, não. Só não sei até que ponto minha opinião serve de parâmetro, pois não acredito em pecado e não gosto de festa. Mas, no país em que vivemos, tenho consciência da importância de valores e rituais religiosos fora (e até mesmo dentro) da bolha intelectualoide/literariosa/artistiquenta que nos circunda – experimente recusar convites para ser madrinha de bebês e/ou de casamento (não por qualquer desculpa íntegra ou esfarrapada, mas porque você não acredita em Deus, nem nesses rituais) e analise a reação das pessoas.


Me assumi ateu aos nove anos de idade; tenho experiência do desconforto que contestar esses valores e quebrar esses rituais pode gerar, até nas menores proporções. Já causei (mais de uma vez) um pequeno alvoroço por respeitosamente me recusar a rezar antes da ceia de Natal. Agora, calcule você o que causaria uma mãe que se recusa, puramente para defender seus princípios antirreligiosos, a ir ao casamento da filha...


Isto posto, o que eu acho a respeito não faz muita diferença dentro da história (e não sou autor que se omita no miolo dos livros), só mencionei meus pensamentos e me estendi um pouco neles porque é um tema que me toca e sobre o qual prometi a mim mesmo que, sempre que possível, usaria meu precário espaço de escritor para abordar. Dentro da história do romance, é o que a Isis acha que conta (afinal, a mãe ausente é a dela). E para uma pessoa no universo dela, com o background dela, com o histórico de discórdia que ela já tinha com a mãe àquela altura, acho que não há dúvidas de que será um golpe duro.


Julia, personagem importante desde o primeiro volume, ainda apegada à relação mãe e filha, imposta por uma sociedade cheia de tabus, não consegue se desfazer desse laço mesmo não amando a própria mãe. Por que acha que isso acontece? Por que o ser humano não se desapega de convenções?


Acho que o desapego total a convenções ou tabus ou padrões nos conduziria à barbárie. Tenho pouco apreço por questões amplas. Gosto mais de observar por que a pessoa X é tão apegada a convenção Y ao mesmo tempo em que não dá a menor importância para a convenção Z. Jesus Cristo, por exemplo, foi bem enfático no posicionamento contra a acumulação de riqueza (“mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”), mas quantas pessoas que fazem declarações homofóbicas tomando a Bíblia como lastro continuam jogando na Mega-Sena toda semana?


Conte-nos um pouco sobre a relação das irmãs Julia e Isis. Não exploro tanto a pergunta para lhe dar a liberdade de explorar a resposta.


No plano mais superficial do texto, aquele imediatamente visível na página, elas interagem na condição de irmãs que moram longe, unidas por carinho recíproco e pelas questões que envolvem se relacionar (escolha da Julia) ou não (escolha da Isis) com uma mãe que ambas veem como um problema.


Num segundo plano, o da cabeça depravada de um cidadão que se sente deslocado no mundo e, para não se matar, precisa inventar histórias e pessoas todo dia, elas interagem na condição de narradoras cada uma de um romance independente que, ao ser lido como duo de romances ou como parte de uma trilogia, devem se entrelaçar. A voz narrativa da Isis é significativamente mais complexa e polifônica que a da Julia, e isso não é por acaso. Tampouco é por acaso que uma tenha nome de música do Bob Dylan, e a outra, de música do John Lennon.


No plano do leitor que, por cento e tantas páginas, me fará a gentileza de jogar o xadrez literário no meu tabuleiro, sempre faltará o que a relação delas significa ao longo do processo de criação. Por exemplo, escrevi a primeira versão de cada um dos três romances em forma de contos, em inglês, em 2018. As narradoras dessas histórias já se chamavam Julia e Isis e já tinham as personalidades que apresentam no livro e a mesma relação entre si. No entanto, de lá até a publicação do primeiro livro, adotei duas gatas (Mingus Rosquinha Goldenberry e Toni Mingau da Silva). Daí em diante, a relação entre as irmãs personagens passou a ser, para mim, espelhada na relação entre as duas gatas, o que não pode ser parte do repertório de leitura de ninguém além de mim (e talvez??? das pouquíssimas pessoas que conhecem as gatas).


A ateia é uma trilogia provocadora. Na sua opinião, a arte tem que provocar?


Não. Não tenho a menor pretensão de ditar o que a arte tem ou não tem que fazer. Para mim, é uma questão de gosto. Cada um com a sua tara. Gosto que me provoquem e fico feliz quando noto que provoquei alguém.


Você já me contou que Elena Ferrante foi uma de suas inspirações como leitor. Posso dizer, pelo pouco que a li, que ela se encantaria com essa história surpreendente de mulheres tão complexas. Conte-nos mais sobre as suas influências de personagens femininos na literatura.


Narradores e narradoras são ferramentas literárias das quais o escritor se serve para produzir (ou não) determinados efeitos de sentido no público. Em boa parte dos casos, representam hipoteticamente, de forma mais ou menos realista, pessoas de carne e osso – quer dizer, mesmo que Capitu não seja baseada em uma mulher real, espera-se que Capitu aja dentro dos limites verossímeis em que podia agir uma mulher do século 19 dentro de tal e tal circunstância. Nesse jogo de representação, muita gente se confunde. Para mim, Isis e Julia não se relacionam em graus de plausibilidade ou verossimilhança com mulheres de carne e osso (nem, diga-se de passagem, com as minhas gatas); Isis e Julia se relacionam com outras narradoras e narradores, assim como Capitu se relaciona com outras personagens desprovidas de voz narrativa. Na vida real, pessoas reais não precisam se pautar (e não se pautam) por plausibilidade e verossimilhança.


É óbvio (se não for, estamos perdidos) que o jogo literário de representação não existe e nunca existirá despregado da sociedade e das relações de poder dentro das quais ele foi composto. Por isso, cabe a quem escreve uma grande dose de responsabilidade.


Deixo um trecho de sua escrita que gosto. Você não foge apenas dos estereótipos, mas também da forma convencional de escrita. Isso me agrada.


“Planejo debandar, de São Paulo até jamais. Me acuso de frouxa, de fujona, de frígida, de fraca e só paro porque se me acabaram os adjetivos pertinentes em efe; não ando fria e evito me ofender em outra letra.”


Como é o seu processo de criação?


À base de reescrita. Ninguém nesta família morre de amor foi escrito quatro vezes de cabo a rabo; Amarás meu nariz brilhante, seis – o que me custou mais de mil horas de trabalho (escrevo com um cronômetro em cima da mesa). Neste exato momento, jaz impresso um conto de dez páginas ao lado do computador em que respondo essa entrevista; uma anotação manuscrita no canto superior direito revela: 12ª versão.


Quando leio, fico entediado (às vezes, até nervoso, chego a falar barbaridades sobre o coitado do escritor) se a linguagem é preguiçosa, vaga, cansada, pouco consciente. Ao escrever, o primeiro leitor a quem quero agradar sou eu mesmo; por isso, trabalho a linguagem com o grau de paciência e zelo com que gosto que me tratem quando estou do outro lado a página.


Seu livro toca em assuntos importantes e que provavelmente todo ser humano passa todo o dia em algum momento. Fala sobre o sadismo encontrado em horas de maledicência. Como o comportamento de alguns familiares perante uma noiva “órfã de mãe viva” no altar. Por que as pessoas agem assim?


Porque é divertido (aprendi com a minha avó e com Proust que fofoca é gênero literário). Porque a pessoa atacada se despersonaliza (a maioria das agressões são levianas, como se não fossem ofender), assim quem ataca pode alegar que é menos babaca do que de fato é (“não fiz por mal”). Por vingança. Por inveja. Por medo de trocar de posição e passar a ser alvo dos ataques. Por complexo de superioridade. No caso em pauta (o da abertura de Amarás meu nariz brilhante), todas essas questões ficam explicitadas e potencializadas porque se trata de uma festa de casamento. Na nossa sociedade, casamento (assim como ter filhos) é visto como um accomplishment, coisa que, confesso, nunca entendi por quê. Por isso, comentários maldosos sobre casamentos ou filhos alheios nos dão a sensação de que os outros são tão fracassados quanto nós que fazemos os comentários. Ou seja, maledicência bem-feita tem efeito catártico.


Mais um trecho que gostei foi sobre como pode parecer fácil aos olhos alheios ser filha de alguém.


“A tia Rebeca despertava inveja nas adolescentes que não moravam com ela: a que não proibia nem vigiava, a que não punia. Ninguém testemunhará a meu favor caso eu represente queixa contra a Cármen por desacato à família na… tsc, na… como chama mesmo a base emergencial da Polícia dos Bons Modos, ali na Cerro Corá? E por que não? Quem vê pensa que não captaram o insulto… – Calma. É o jeito da Cármem...”


O que faria Daniel para esclarecer ao parente essa relação em uma situação dessas?


Nada. Na vida pessoal, tendo a ser recluso, arredio. Não dou satisfações a quem não as devo.


Daniel, muito obrigada pelo seu tempo e escrita. Dá para dar um spoiler sobre o que podemos esperar no próximo volume?


Eu é que agradeço, pela confiança da Laranja Original no projeto da trilogia. Quanto ao terceiro e último volume, posso adiantar que é uma prequela. Vai cobrir a juventude da mãe das narradoras dos primeiros dois volumes, desde os anos de faculdade até o momento em que abandona a fé e se declara ateia.




Foto: Guilherme Beltrami



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