As várias faces de Eva em Paula Cohen
“¿Qué máscara es la que estás usando?” Pergunta-nos um verso do poema – La carboneria –, que consta do livro de poemas “Vou comer brilhantes para ver se quebro um dente”, da atriz e escritora Paula Cohen – Editora Laranja Original – SP – 2016, 31p – *Ver abaixo.
Depois de um franco convite ao amor desenrolado, liberto, sincero e profundo com que a autora abre o volume (poema Fica a vontade), algo vai, sorrateiramente, se insinuando se mirarmos o conjunto sob o ponto de vista do sentimento. Parece-nos que as sucessivas desilusões, a coleção de desencontros amorosos (que é de fato como a vida é), revelam um grito de desabafo:
“...tradição e traição
têm a mesma raiz
um sopro de liberdade
sem culpa
no coração de quem sempre se priva”
– Poema Vênus em Áries;
Ou,
“...uma hora dessas você aparece
como se nunca tivesse sumido
como se não houvesse sempre mentido
como se o tempo não fosse sua testemunha
de acusação”
– Poema Código de farra.
(ilustração - Flavia Erenberg)
O estilo de Paula Cohen faz cair máscaras e lembra em certa medida a Clarice Lispector de “Onde estivestes de noite” (de 1947), no qual declara abertamente: “O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer”. E assim, vamos deparando-nos com uma verdadeira tempestade cerebral (siento el calor de la carne cruda que vive debajo de mi piel) onde Paula revela a nota aguda de seus transes líricos expressos em composições formais nada ortodoxas, que admitem realidades outras para além do mistério oclusivo da personalidade.
Assistimos a entrada em cena de personagens desmascaradas. Aquelas que se insurgem contra a coisificação do ser em meio a esse esgotamento do amor ilusório e iludido que grassa a torto e a direito.
“.....perdi a fome a cor o nome a porta
perdi o que não se acha fácil
perdi o ser que me habitava
perdi o tempo cada instante”
– Poema Sem procurar.
Ou as caras e bocas falsas do “amor” assumidamente prostituído:
“não casou
não acredita em convenções antigas
embora leia e releia o velho testamento
já fumou a Bíblia
fica mais perto de Deus
é assim que ela sente essas coisas
vive fantasiando suas trepadas póstumas
queria muito dar para o santos
provar o sexo dos anjos
servir de ambrosia
oferenda de si”
– Poema Dignidade.
E semblantes que descortinam, contemplam e assimilam a maturidade:
... tenho atravessado oceanos
paredes
muralhas
portais
pensado mais
falado menos”
– Poema Raio X.
E ainda as frontes daquelas que tem a plena consciência do poder que possuem de responder à altura a ultrajes amorosos como o expresso no poema “Se você quiser”. Senhores tremei, porque é fato inconteste: mulheres ultrajadas destroem impérios. Vale a pena ler e reler.
Amorosas, sedutoras, carentes, desiludidas, histéricas ou maduras. Aquelas que não se acovardam diante da vida, que vão à luta, enfrentam os desafios de ser mulher numa sociedade preconceituosa e machista, e quebram os protocolos da imagem construída, subvertendo a ordem e o pensamento arcaico. Assim as várias faces de outra Eva (não aquela coisa copiada e submissa que foi tirada de uma costela) em Paula Cohen que, com seu estilo incomum, flutua, voa na inspiração com as asas da liberdade. E como voa!
Não resistimos em transcrever um dos mais belos poemas do livro.
DIAS TÃO ASSIM
não mais do que precisava
um cigarro em uma mão
um baygonna outra
inflamável jeito de ver as coisas
dramática veia aorta
gasta de tanto fluir
de tanto mandar recado entre células
sintaxe de relação
bombeia um coração só
enquanto eu
carrego a cesta de dúvidas para o lobo
que mora aqui dentro
de favor
tudo muito bem embalado
no vácuo que nos conserva
estranha cara a minha
estranhas questões
profunda solidão em mim
lança perfume de matar baratas
um gole seco de spray
numa tragada inflamável.
Novembro/2016
O livro está à venda pelo link: www.laranjaoriginal.com.br/product-page/5b5aa1b7-bbb5-e890-104f-0aa025c754c8
Paula Cohen quem é? Nascida em 1974, em São Paulo, é de família uruguaia. Formou-se em Artes Cênicas pela Escola de Arte Dramática EAD-USP, e também em Jornalismo, pela FMU. Vem sendo uma das atrizes mais atuantes do teatro paulistano, e nos últimos anos ganhou bastante destaque na televisão e no cinema. No teatro já representou mais de 30 peças. Recentemente esteve em cartaz com ‘As lágrimas quentes de amor que só meu secador sabe enxugar’, solo dirigido por Pedro Granato, que divide com ela a autoria.